Nunca esqueceremos

Os mais cínicos afirmarão que está tudo escrito nas estrelas e que a resposta à pandemia será o derradeiro capítulo do SNS, destinado a cuidar apenas dos que não têm seguro de saúde. Mas opto por acreditar que “nunca esqueceremos” e que as lições destes quase dois anos darão fruto com o novo ciclo político que aí vem.

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Rui Gaudencio

A frase “We will never forget” surgiu pouco depois do fatídico e cobarde ataque de 11 de Setembro de 2001. Nesse dia fomos todos americanos e sentimos o peso da história. Daí que os mais avisados tivessem começado logo a dar um rosto (vários rostos) à tragédia para que esta não ficasse refém de ideologias abstractas. As vítimas eram como nós. Pais, filhos, desportistas, mulheres e homens com sonhos e planos brutalmente interrompidos. Sinto também essa crueza abrupta com a pandemia. E tal como a poeira dos destroços do ataque não se limpou com um pano, também o trauma pós covid-19 não vai desaparecer num ápice.

O lastro do vírus SARS-CoV-2 ficará entre nós durante muito tempo. E se o regresso à vida social e para além da doença é fundamental, seria um erro regressar ao passado como se nada tivesse acontecido.

Aos que partiram, e aos que ainda estão doentes, devemos essa reflexão crítica. Logo em 2020 escrevi aqui o que já tinha aprendido. Na altura foquei-me nos pontos positivos. A entreajuda entre as diferentes especialidades médicas, o empenho da sociedade civil, a racionalidade como leme para a estratégia.

Mas recordo agora também o que correu menos bem. O pensamento mágico de algumas figuras públicas que defenderam produtos “naturais” e denegriram as vacinas e o uso de máscara, as reuniões de peritos mal resumidas por líderes sem preparação, o pessimismo dos comentadores que atacaram o processo de vacinação português e o ataque aos profissionais que denunciaram as más condições no tratamento dos doentes. Aliás, a minha percepção é de que a violência (verbal e não verbal) contra os profissionais de saúde está a aumentar.

Como os líderes não se manifestam perante estes casos, multiplicam-se os discursos de ódio nas redes sociais e alguns colegas médicos de família voltam a relatar-me o que acontecia antes de 2020, com muitos a querer reduzir a nossa função ao de um funcionário obediente e responsável por tudo. Ainda esta semana um doente com discurso agressivo e dedo acusatório afirmava que eu era o culpado pelo mau estado das cadeiras da sala de espera.

Os mais cínicos afirmarão que está tudo escrito nas estrelas e que a resposta à pandemia será o derradeiro capítulo do SNS, destinado a cuidar apenas dos que não têm seguro de saúde. Mas opto por acreditar que “nunca esqueceremos” e que as lições destes quase dois anos darão fruto com o novo ciclo político que aí vem.

Em comunidade, podemos inaugurar um novo plano a longo prazo. Podemos colocar o cidadão no centro e ouvir os doentes e os profissionais de saúde. Podemos dialogar e negociar compromissos para além do prazo de uma legislatura.

Parafraseando, Kennedy “não perguntes o que o SNS pode fazer por ti, mas sim o que tu podes fazer pelo SNS”. Aceitas o desafio?

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