Os livros servem os amantes

A distância cria inevitavelmente novos hábitos, sem querer, e começamos a arranjar maneiras de sobreviver à solidão e de manter bem unida essa linha invisível chamada amor. Ele começou a ler para mim à noite, espontaneamente, sem que tivéssemos combinado.

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Ele encontra-se em Lisboa há vários meses e eu, embora seja português, vivo no Brasil vai para duas décadas, em São Paulo. Somos marido e marido há mais de dez anos. Temos muita saudade, sobretudo à noite quando pousamos a cabeça no travesseiro e por companhia vemos a outra fronha vazia. A distância cria inevitavelmente novos hábitos, sem querer, e começamos a arranjar maneiras de sobreviver à solidão e de manter bem unida essa linha invisível chamada amor.

Ele começou a ler para mim à noite, espontaneamente, sem que tivéssemos combinado. Quis partilhar um livrinho, A Vida Mentirosa das Crianças, de uma autora portuguesa de que gosto bastante, Cláudia Lucas Chéu, e que não se encontra publicado no Brasil. Ele sabia que eu queria muito lê-lo. Por isso, em vez de enviá-lo por correio, resolveu lê-lo para mim por chamada de vídeo.

Deitados na cama, à luz do candeeiro de cabeceira, eu em nossa casa no Brasil, ele num apartamento arrendado no centro da capital portuguesa, que ainda só conheço através das imagens que me vai mostrando, pousámos o celular na almofada do nosso lado. Num certo ângulo me fez parecer que eu estava com a cabeça no seu peito. Ficámos assim, nos escutando e nos vendo através do aparelho. Pude-me deliciar com a voz do meu marido e imaginar seus lábios encaixilhados pela barba escura e cerrada — sinto tanta falta de a sentir encostada no meu pescoço, é a barba mais bonita e cheirosa do mundo.

“O amor por aquela pessoa está sempre a nascer, a começar, como se fosse a primeira aurora da origem do mundo. A única aurora que te interessa assistir. A única história, como diria Barnes.” A voz do meu marido — tenho tanta sorte — do outro lado do oceano, sussurrando palavras de amor, embora escritas por outra pessoa, são como um bálsamo para mim. A saudade imensa que sinto coincide com as palavras da autora: “Desejas muito, todas as noites, que te venha abraçar. Em silêncio, sem palavras. Sem linguagem verbal, a origem de toda a mentira, que não serve o abraço e o beijo, que não serve o amor. Esperas que o amor único que sentes encontre finalmente o amor que não termina. Que se encontrem.”

Quando termina a leitura do pequeno livro, pouco mais de 30 páginas, me comovo de alegria até às lágrimas. Estou tão feliz. O gesto de ler para mim é das coisas mais bonitas, mais carinhosas que me fizeram. Desde a noite em que iniciámos este hábito de leitura, fazemo-lo todas as sextas através do celular. Combinámos também que faríamos uma leitura juntos quando ele voltasse para casa, daqui a um mês. Sou eu quem vai escolher o livro. Ainda não sei qual será. Talvez vou querer que releia o mesmo que deu início a este novo hábito. Vou ouvi-lo na almofada, finalmente ao meu lado.

Sei que iniciámos uma nova fase graças à distância e aos livros. Sei que tudo isto me fez amá-lo ainda mais. Estamos sempre nos reinventando. Penso que todas as histórias de amor são assim. 

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