Ao cuidado do próximo Governo

Algumas pistas sobre aspectos a considerar nos programas eleitorais a apresentar pelos partidos.

À beira de eleições, depois da fase da política pura e dura pré-eleitoral, chegará o momento para os partidos apresentarem os seus programas. Se a justiça for a área prioritária que todos dizem, convém que os eleitores fiquem atentos às propostas. Atrevo-me a deixar aqui algumas pistas sobre aspectos a considerar.

O acesso à justiça é caro e favorece os ricos e poderosos. Há que reduzir significativamente as taxas de justiça, alargar o apoio judiciário às classes médias e grupos vulneráveis e qualificar a advocacia oficiosa. Custa dinheiro, mas é essencial para assegurar a tutela dos direitos fundamentais de todos os cidadãos.

No governo das magistraturas, a composição dos conselhos superiores é uma falsa questão para esconder o desejo de pôr a justiça sob controlo político. É preciso, isso sim, activar os instrumentos de responsabilização e legitimação democrática que já existem. Por exemplo, os relatórios anuais da actividade dos conselhos superiores passarem a ser discutidos em audição pública na primeira comissão do Parlamento, todos os membros não juízes passarem a participar na gestão executiva dos conselhos a tempo inteiro, as decisões de nomeação dos presidentes dos tribunais de primeira instância serem publicitadas e a eleição dos presidentes dos tribunais superiores ser precedida de apresentação de candidatura e debate público dos projectos.

Na integridade das magistraturas, há pontos sensíveis a resolver: as “portas giratórias” entre política e justiça, mecanismos mais robustos de avaliação da idoneidade ética à entrada das carreiras e no regresso de licenças sem vencimento e comissões de serviço não judiciais, o alargamento das possibilidades de suspensão preventiva na pendência de processos criminais ou disciplinares por actos corruptivos e a criação de canais mais efectivos e consequentes de denúncia interna e externa, são alguns exemplos.

Não há um problema de ineficiência global do sistema de justiça. Há sim sectores-chave com entraves graves que necessitam de mais meios, melhor organização e pequenas alterações na lei. Eis alguns tópicos: a morosidade na aquisição de prova nos mega-inquéritos, a inútil mimetização do julgamento na fase de instrução, a revisão oficiosa das medidas de coacção após a sentença condenatória em prisão efectiva, a antecipação da execução da sentença condenatória para o momento da sua confirmação em recurso e a atribuição ao juiz do poder de travar o uso abusivo do processo, com o processamento dos incidentes supérfluos por apenso sem efeito suspensivo.

A eficiência na justiça administrativa e fiscal é de longe o sector mais crítico. É urgente um plano de choque que preveja, nomeadamente, o aumento conjuntural dos quadros de juízes para liquidar rapidamente as pendências atrasadas, normas processuais especiais expeditas, do tipo da injunção civil, para as causas de pequeno valor, de litigância massificada ou já objecto de jurisprudência estabilizada, a intervenção dos agentes de execução na justiça administrativa e a profissionalização da gestão, com a aprovação da lei orgânica do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que se arrasta há anos.

Na legislação substantiva, saliento dois pontos. Primeiro, a legislação anticorrupção e a criminalização da ocultação de riqueza adquirida em cargos públicos. Não podemos passar mais dez anos a fechar os olhos à iniquidade. Segundo, moralização e transparência na justiça arbitral. O Estado não pode gastar dinheiro na justiça privada dos tribunais arbitrais e desinvestir na justiça pública. As sentenças dos tribunais arbitrais que decidem sobre dinheiro público não podem ser secretas e têm de aumentar as possibilidades de recurso para a justiça comum. O Ministério Público tem de intervir como parte acessória nos processos arbitrais que envolvem verbas públicas. O Tribunal de Contas tem de poder fiscalizar a despesa pública nos acordos arbitrais em que o Estado se vincula a pagar milhões a privados. O “negócio” das arbitragens tem de ser controlado com mecanismos que assegurem a imparcialidade dos árbitros e a moderação no pagamento dos honorários.

Aguardemos para ver o que nos propõem os partidos, atentos aos detalhes, onde se normalmente se esconde o Diabo.

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