Café para uma direita adormecida

O espectro que ronda a Europa e o mundo não é o do comunismo, sabemos bem. O espectro é o da mais bruta flor do fascio. As autárquicas mostraram que o PS está longe de ser hegemónico e que, apesar da algaravia desastrosa e cómica do PSD e da irrelevância bem-vinda do Chega, a direita galga espaços inéditos no território português.

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Daniel Rocha

Devemos ser precavidos. Devemos tomar cuidado com quem convidamos à mesa. Quem tardou a saber disso foi Salvador Allende, morto no dia 11 de Setembro de 1973, no Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile, com uma bala na cabeça, resultado das covert operations dos Estados Unidos e da oposição à direita, mas também à esquerda.

Antes que me acusem de conduzir uma comparação disparatada, afirmo já que o Partido Socialista (PS) não tem paralelo com a Unidade Popular, que António Costa está, ideologicamente, a oceanos de distância do ex-Presidente chileno, e que o Portugal de 2021 em nada — ou quase nada — se assemelha ao Chile de 1973. 

Entretanto, aqui apelo à sensibilidade de quem lê para apontar uma sombra de semelhança. O resultado prático da oposição de esquerda ao governo Allende não foi a adesão em massa do povo chileno aos programas mais — e utilizo o termo em tom elogioso, distando-me de qualquer carácter pejorativo — radicais. Foi a repressão, foi o neoliberalismo da escola de Chicago, esticando as suas visíveis mãos ao mercado enquanto as tornava invisíveis ao povo, e foi o fuzilamento de opositores por uma ditadura escabrosa concretizada por Pinochet. O que quero dizer é que a falta de sensibilidade para as relações políticas globais da oposição de esquerda levou a uma miopia anti-pragmática, cujos resultados marcaram a sociedade chilena para a posteridade. 

E é aqui que aterramos em Portugal, 2021. O espectro que ronda a Europa e o mundo não é o do comunismo, sabemos bem. O espectro é o da mais bruta flor do fascio. As autárquicas mostraram que o PS está longe de ser hegemónico e que, apesar da algaravia desastrosa e cómica do PSD e da irrelevância bem-vinda do Chega, a direita galga espaços inéditos no território português. 

Sim, António Costa trabalhou pela aprovação das reformas ao Código de Trabalho que extirparam direitos e fragilizaram a vida do trabalhador português; sim, também levou o SNS a uma caótica forma de financiamento que valoriza as parcerias e escorraça os médicos e enfermeiros que atendem aos homens e mulheres que a eles recorrem. E tudo isso é um grama de medidas que são a antítese do que urge o povo, e, por isso, além das acusações mútuas de acordos não cumpridos, a indignação injectada do BE e do PCP são mais do que justificáveis. A geringonça pode ter sido atirada aos lobos por António Costa, e essa é uma crítica que a esquerda e a sociedade devem fazer, uma cobrança que devem impiedosamente realizar, desde que a resposta não seja desproporcional. 

Chumbado o orçamento, havendo novas eleições, em quem o povo português irá depositar suas esperanças? No PCP, no BE, integralmente no PS, ou numa força qualquer de direita que implantará o desgoverno liberal do qual Portugal já foi vítima, agora com o afago descerebrado do atroz Chega? Os ventos da política mudam de direcção num instante, num piscar de olhos, enquanto certos compromissos, como o de verdadeiros líderes com os seus povos, são feitos para florescer muito além do tempo de uma vida.

Por mais que certos ventos de mudança tenham lavado um pouco o fascismo estrepitoso de norte a sul, a sensação deste que vos fala, emigrante do Brasil de Bolsonaro, é de que a esquerda portuguesa, distraída destes ventos, acabou de puxar uma cadeira e de se sentar à mesa do pequeno-almoço. Com muito esmero colocou a toalha, preparou os guardanapos e as xícaras. Arrastou mais uma cadeira e passou um café preto, expresso, bem forte, e serviu-o a uma direita até então adormecida. 

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