O que acontece no recreio tem muito a ver com o que acontece na sala de aula

Mesmo com um projecto pedagógico ideal, os problemas entre pares podem tornar as idas para a escola numa tortura. Fala-se de bullying, mas devia falar-se muito mais de amigos e de colegas.

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@designer.sandraf

Ana,

A maioria dos miúdos portugueses de 15 anos afirma que aquilo de que mais gosta na escola são os recreios. Diz um estudo da OCDE. Parece-me que querem dizer “os amigos”. Mas nem sempre fazer amigos é muito fácil, pelo menos para alguns, pelo menos ao princípio. E nada angustia mais uma mãe, ou uma avó, do que chegar à escola e ver o seu filho ou neto a brincar sozinho, a um canto.

Não falo de cor. Quando foste para uma nova escola aos 4/5 anos encontrei-te assim muitas vezes, e o meu coração ficava do tamanho de uma ervilha. Até que um dia me disseste que uma menina te tinha pedido um ovo surpresa — sim, já existiam! — em troca de brincar contigo. Subi às paredes, senti uma raiva enorme, fiz-te um sermão sobre como a amizade não se compra, mas, claro, no dia seguinte levaste mesmo o raio do chocolate com o brinde lá dentro.

Desejei ardentemente que voltasses feliz, mas vinhas a chorar. Afinal a menina tinha escolhido brincar com outra que lhe trouxera não um, mas dois ovos-surpresa. Tive vontade de a esganar. Não esganei. E, na verdade, só te integraste a sério no ano seguinte quando por sorte tiveste uma professora excepcional. E aí percebi que o que acontece no recreio tem muito a ver com o que acontece na sala de aula. Descobri, entretanto, também um truque que resulta — convidar uma potencial amiga para brincar em casa, no território da mais tímida, criando uma aliança que serve depois de armadura no dia-a-dia da escola.


Querida Mãe,

Tenho vindo a perceber com os meus filhos a importância dos amigos na escola, e a dificuldade que se cria na falta deles. Cada vez mais percebo que havendo amigos, os professores mais chatos, as exigências, os testes, podem passar rapidamente para segundo plano. E que mesmo com um projecto pedagógico ideal, os problemas entre pares podem tornar as idas para a escola numa tortura. Fala-se de bullying, mas devia falar-se muito mais de amigos e de colegas.

Há uns anos, lembra-se que uma dela teve de mudar abruptamente de escola a meio do ano? Quando entrámos na nova turma juro que pensei que alguém tinha subornado aquelas crianças para a receber. A sensibilidade, a simpatia, o apoio que os colegas lhe deram parecia de um conto de fadas. Como explicá-lo? Um acaso total? Que, por sorte, todas as crianças naquela sala eram excepcionalmente queridas? A resposta chegou depressa. Era a professora, claro. A forma como lidava com cada um deles, o espírito de equipa que criara entre os seus alunos, desenvolveram neles um sentimento de pertença, mas também de aceitação. E, num ambiente assim, os miúdos relaxam e participam, mesmo os emocionalmente mais frágeis, e expondo-se mais, criam mais facilmente amigos.

Por isso sim, mãe, acredito que a minha integração na escola, que passei a adorar, foi obra daquela professora de que me lembro bem. Infelizmente nem sempre é assim, e pergunto-me muitas vezes que consequências tem na dinâmica de grupo as bolinhas vermelhas e amarelas que persistem? As frases ditas frente à turma, do estilo “Não tens vergonha? É sempre a mesma coisa!”, “Olha para os teus colegas a olhar para ti”, ou a mais injusta das sentenças que continuo a ver aplicar: “Ficam todos sem recreio porque o x não acabou o trabalho a tempo.”

Que sentimentos florescem no meio destas comparações e humilhações, usando a bengala da pressão dos pares para atingir objectivos (lá fora, ajusta-se contas para o infractor não voltar a obrigar todos os outros a comerem por tabela). E, claro, a outra coisa são os recreios! A começar pelos espaços físicos — a mãe e o Eduardo Sá abriram há anos uma guerra aos recreios que não podiam ser usados nos dias de chuva, lembra-se? Pois, há séculos que professores e pais reclama este direito básico para as crianças: recreios em condições para cultivar e acolher as suas brincadeiras, promover a criatividade e a motricidade.

Na prática, a maior parte dos recreios das escolas públicas são pátios de prisão. Cimentados, cinzentos, vazios e a única coisa que promovem é irritações e conflitos. As relações sociais e a brincadeira não são “aquilo que se faz quando não há fichas”, é o lugar onde a essência do desenvolvimento infantil se dá. A escola tende a descurar esta parte, quer física, quer emocionalmente. E toda a gente que estudou desenvolvimento infantil, sabe isto e toda a gente está de acordo neste ponto. Então porque é que continuamos na mesma?

Beijos

PS: O seu truque é muito bom! Aliás, acrescento que para crianças que têm dificuldades em entrar na escola de manhã, principalmente depois de fins-de-semana ou férias) pode ajudar imenso combinar com uma amiga uma tarde de brincadeira na véspera; ou até um pequeno-almoço meia hora antes, num café próximo. Muda tudo!


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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