A voz

Fascina-me a vida todos os dias quando posso reparar em alguém e perguntar: por que está ali? Vive sozinho? Está triste? São essas perguntas que me situam aqui.

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"Às vezes basta chegar a tempestade" Mag Rodrigues

Foi depois do almoço. Estava a chegar a tempestade. Sem prever fui duas vezes ver a praia. Um homem passeava o cão grande dando folga à trela e à solidão.

Fascina-me a vida todos os dias quando posso reparar em alguém e perguntar: por que está ali? Vive sozinho? Está triste? São essas perguntas que me situam aqui. É por isso que escrevo. Tenho tantas perguntas que os meus olhos guardaram! São elas que afastam as intempéries interiores tão súbitas como a tempestade que chegou hoje.

Na praia, o dono do café olhava para o céu enquanto mandava arrumar a esplanada. As ruas já estavam desertas e o vento assobiava nos cartazes desbotados que prometeram o verão.

Naquele café, há 40 anos, eu levava uma moeda como se fosse uma libra de ouro guardada meia vida, para depois comprar um gelado que sobrevivia dez minutos.

Ficava ali, hesitante, olhando para a máquina rudimentar dos sorvetes ou a arca envidraçada que se abria para entregar o meu prémio. Os nossos olhos brilhavam quando por fim tínhamos direito ao gelado. Qual seria? Aquele que não desse troco à moeda entregue.

Lembro-me de ver os rapazes cuidados da cidade que vinham de peito aberto viver as aventuras de verão. Eu pressentia que nunca olhariam para mim. E, no fundo, vivi parte da vida assim: nunca foram as pessoas a vir ter comigo: fui sempre eu a ir ao encontro delas. Das que me trouxeram perguntas.

Em todas as fotografias me vejo agora melhor do que no momento em que fui retratada. Apontei-me sempre defeitos para mais tarde pensar que fui injusta comigo mesma. Afinal os retratos estavam certos naquele passado que era presente mas eu parecia não caber neles, como se me sentisse quase sempre desadequada. Vemos muito melhor com a distância. A miopia do tempo não me limita.

Percebo agora por que fui tão poucas vezes àquele café da praia ao qual voltei hoje sozinha. O café estava sempre cheio de gente que parecia viver de farra em festa e eu estava a mais. Entrava a medo de moeda na mão. Só queria o prémio do fim do verão e não precisava que olhassem para mim. Precisava, mas temia que não olhassem.

Só tive voz mais tarde quando já não eram os gelados que me consolavam mas as respostas que não se fabricam em máquinas artesanais.

No café, hoje, com a chegada da tempestade, as cadeiras eram encavalitadas com pressa e, lá dentro, um homem de queixo caído no pulso parecia fazer parte da mobília. Talvez estivesse lá desde sempre. Se calhar fui eu que não reparei nele há 40 anos desde esse momento em que eu subia o areal no incómodo do sal colado às pernas por onde escorreria depois o sorvete derretido. Às vezes acontecia. Tudo se misturava na ânsia de ter o meu prémio.

O homem de queixo caído nem olhou para mim. Olhar baço gasto pelo tempo. Na minha aparição improvável ao fim de tantos anos, espreitei cada recanto: a montra vendia o marisco de sempre ao preço de caviar e eu bebi um café ao balcão enquanto anotava mentalmente todos os troféus em que nunca reparara por temer que reparassem em mim. Que percebessem que eu era uma miúda nem bonita nem feia, ‘assim-assim’. Eu não vinha para a praia de peito aberto quando tantos nós da existência me apertavam. Nem sei qual era a minha voz quando me sentia desadequada. Sei que anos mais tarde foi essa voz que me defendeu e me deu sentido como se a vida reparasse por fim em mim e puxasse de uma cadeira para me sentar. No centro de tudo.

Até ter uma voz contei as histórias todas para dentro de mim. Para não me sentir desadequada. Para que não reparassem em mim temendo não ser tão bonita como eles achavam que eu devia ser.

Hoje no café, antes da tempestade, fiz um ajuste de contas com o tempo: não, não havia nada de errado comigo. Era só uma miúda à procura de um lugar para me sentar no centro de tudo e poder deixar de contar as histórias para dentro de mim.

Se temos uma voz, ela tem de ser ouvida.

Às vezes basta chegar a tempestade.

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