Devolver IRS é aumentar a injustiça social na cidade

A proposta de devolução do IRS “aos lisboetas” é, simultaneamente, uma fraude económica e uma opção socialmente injusta. Afinal, os “novos tempos” estão carregados de passado, as políticas que anunciam têm como foco proteger os privilegiados.

“Uma câmara que queira fortalecer a comunidade deve antes de mais libertar recursos para que seja cada lisboeta a decidir o que fazer com esses recursos”. E foi neste tom liberal que Carlos Moedas confirmou a sua prioridade, já definida em programa eleitoral, de devolver aos lisboetas “o máximo de IRS que uma câmara pode fazer”, provocando, assim, uma redução do orçamento municipal de Lisboa em 70 milhões de euros.

Quanto é que são 70 milhões no orçamento da cidade?

- 70 milhões correspondem a cerca de 50% do investimento municipal anual, a 3,5 anos de investimento nas políticas sociais e a seis anos de subsídios à exploração da Gebalis (bairros municipais).

- 70 milhões são, de facto, uma verba que pode fazer a diferença, se aplicada nas áreas de desenvolvimento social e, fundamentalmente, no combate às desigualdades e às diferentes manifestações da pobreza urbana.

-70 milhões são também fundamentais para que a trajetória da cidade responda aos desafios do desenvolvimento urbano sustentável com que Lisboa se confronta. Estes deverão ser, de facto, o foco das políticas públicas locais cuja relevância social se vê reforçada no contexto que a pandemia provocou.

Quem beneficiaria, então, com a opção de Carlos Moedas, impondo uma redução brutal da receita municipal com o propósito de “devolver o IRS aos lisboetas”?

O gráfico que acompanha este texto fala por si. A devolução do IRS “aos lisboetas”, a ocorrer, apresentaria um padrão altamente diferenciado ao longo dos escalões de rendimentos segmentados por decis de rendimentos. Esta devolução favoreceria, principalmente, os contribuintes com rendimentos mais elevados, os do 10.º decil (rendimentos brutos acima dos 46 mil euros por sujeito passivo). Em média, um sujeito pertencente a este grupo de contribuintes beneficiaria de uma devolução de 1285 euros, isto é, 80 vezes a devolução média a um contribuinte do grupo dos 50% mais pobres (rendimento inferior a 14 mil euros) cuja devolução totalizaria 16 euros.

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Os lisboetas com rendimentos mais elevados são, de facto, os grandes beneficiados com a proposta de Moedas. O conjunto de 10% de contribuintes integrantes do 10.º decil arrecadaria 56% do IRS devolvido. Se se considerar a devolução de IRS que caberia aos dois últimos decis (grupo dos 20% de contribuintes com rendimentos mais elevados) chegamos a um valor igual a 76% da devolução de IRS.

No lado oposto da escala de rendimentos, para os contribuintes de baixos rendimentos, o valor da devolução é insignificante, como já referido, sendo o benefício individual da proposta praticamente nulo. A devolução aos 50% mais pobres é igual a 3% do montante total a devolver.

Isto é, a proposta de devolução do IRS “aos lisboetas” é, simultaneamente, uma fraude económica e uma opção socialmente injusta. Atributos que se aplicam também à proposta do PS, aprovada durante o mandato anterior, de devolução do IRS, ainda que pela metade do valor que Moedas agora propõe. É uma fraude económica porque a devolução do IRS consubstancia uma forte redução de receita própria do município, uma despesa fiscal que o município teria de assumir e que teria como consequência a significativa diminuição da sua capacidade de investimento.

É, por outro lado, uma opção orçamental socialmente injusta, porque impõe uma perda de receita municipal para beneficiar diretamente as famílias de rendimentos mais elevados e, particularmente, as famílias mais ricas da cidade de Lisboa (que integram o grupo das famílias mais ricas do país). Esta opção viola, ainda, o princípio da progressividade do imposto sobre o rendimento pessoal estabelecido pela Constituição da República.

Os desafios de desenvolvimento urbano que Lisboa hoje enfrenta, garantindo as condições para um direito à cidade para todos, exigem mais políticas públicas, mais investimento público, mais orçamento público. O contrário é uma ficção!

A proposta de Moedas tem, contudo, uma virtude: mostra que, afinal, os “novos tempos” estão carregados de passado, as políticas que anunciam têm como foco proteger os privilegiados e como resultado aumentar a injustiça na cidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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