Falta de inspectores condiciona actividade dos matadouros

Abater animais em matadouro sem a presença de um médico veterinário do Estado é crime contra a saúde pública. Em Portugal, o défice crónico de inspectores sanitários “condiciona a actividade” e gera problemas de “concorrência” entre operadores económicos da UE. O Governo diz que vai “reforçar”.

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Andre Rodrigues
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Reuters/ADREES LATIF
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Daniel Rocha / PUBLICO

No dia 12 de Outubro, o matadouro Ribasabores, em Tomar, que opera sobretudo com suínos e borregos, “não pôde abater” animais durante “todo o dia”. Motivo? Falta de inspectores sanitários, a quem compete inspeccionar o abate, garantindo que são cumpridas, entre outras, as regras de bem-estar animal, de higiene ao longo da cadeia de abate, de rastreabilidade dos animais e das carcaças resultantes, de verificação dos planos de segurança e manutenção, de higiene das infra-estruturas, dos equipamentos, do pessoal, do controlo da água potável e da temperatura nas câmaras frigoríficas e nas salas de desmancha. Só se tudo isto estiver conforme é que o processo termina com a aposição, pelo inspector sanitário, de um carimbo oficial — o número de controlo veterinário —, atribuído pela Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), que garante aos agentes económicos e, no final, ao consumidor que a carne foi devidamente inspeccionada.

O episódio em Tomar foi relatado ao PÚBLICO pela directora executiva da Associação Portuguesa dos Industriais de Carnes (APIC), que teve “autorização” do administrador da empresa para revelar o caso. Naquele dia, conta Graça Mariano, “70 trabalhadores ficaram parados”, sem que as autoridades oficiais “resolvessem” o problema, pese embora a APIC tenha enviado “um email à directora-geral [de Alimentação e Veterinária, Susana Pombo], e à ministra da Agricultura [Maria do Céu Antunes], mas sem nenhuma resposta”. A APIC “telefonou à directora-geral [da DGAV], tendo esta referido que nada poderia fazer”.

Este não é caso único. Graça Mariano relata outra situação em que “não se concluiu o abate dos animais detidos na abegoaria quando faltavam 30 minutos de laboração, porque os inspectores se recusaram [a acompanhar o processo], alegando terem já ultrapassado o tempo regular”.

“Carne é o alimento mais controlado”

Questionado pelo PÚBLICO, o Ministério da Agricultura garante que os médicos investidos das atribuições de Autoridade Veterinária Nacional “trabalham aos sábados, domingos e feriados, caso haja necessidade”. Aqui, no entanto, não laboraram além da hora “regular”. A directora-geral da APIC lamenta que, fruto da suspensão do abate, “o operador económico não tenha podido entregar a carne requerida pelas empresas de distribuição, as quais têm contratos que determinam avultadas indemnizações por não cumprirem a entrega das quantidades de alimentos acordada”.

“A carne é, de todos os alimentos, o mais controlado”, garante Graça Mariano, uma vez que “os animais só são abatidos na presença de um representante do Estado”. Explica, aliás, que os industriais do sector pagam ao Estado por esse serviço público de controlo veterinário, que é obrigatório (ao abrigo do Decreto-Lei n.º 178/2008), “um valor acima de 35.000 euros por mês, muito acima do real custo com os vencimentos dos inspectores sanitários colocados nos matadouros de ungulados (bovinos, ovinos, caprinos, porcos, cavalos)”. Nos matadouros de aves, “o valor da taxa é inferior e não cobre o custo da inspecção”.

O défice de inspectores sanitários para satisfazer as necessidades de laboração da indústria de carnes foi confirmado ao PÚBLICO por Henrique Monteiro, director para a área da Qualidade da Carmonti, no Montijo, durante uma visita ao matadouro e à salsicharia este mês de Outubro.

A empresa reergueu-se e inaugurou novas instalações em Fevereiro de 2014, após um incêndio em Agosto de 2013. Emprega hoje 210 pessoas. Só na Qualidade, prestam serviço três engenheiros alimentares e um médico veterinário. E têm de proceder à requisição de inspectores sanitários junto da DGAV para as operações diárias de abate, de segunda a sexta-feira. “Por dia, há quatro inspectores, que se revezam, mas podem chegar a estar seis pessoas” a inspeccionar o abate.

Henrique Monteiro não esconde: “Uma das dificuldades tem a ver com a dimensão do corpo de inspecção”. “Se, por alguma razão, eu hoje precisar de abater dois mil animais, tenho de ter mais inspectores para assessorar. E não há”. “Normalmente, comunicamos à DGAV o plano para a semana seguinte para eles organizarem as equipas. Mas imagine que, num feriado, eu quero vir trabalhar, contratei as minhas pessoas todas, é um serviço extraordinário”. Aí, conta o engenheiro alimentar, “provavelmente, a DGAV não ia trabalhar e eu também não ia conseguir trabalhar”.

DGAV “condiciona muito”

Graça Mariano, ela própria ex-directora de Serviços do Departamento de Riscos Alimentares e Laboratórios da Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (ASAE) e ex-subdiretora-geral da DGAV, confirma que a instituição agora liderada por Susana Pombo “condiciona muito a actividade das empresas”. Apesar de estas “contribuírem para o desenvolvimento do país”, “criarem riqueza” e “condições para que as populações se fixem ao interior de Portugal”.

Os operadores económicos do sector das carnes, diz Graça Mariano, são “prejudicados pelo Estado” devido à falta de inspectores sanitários. Desde logo porque, “noutros Estados-membros, sobretudo em Espanha, não existem estas limitações e, por isso, [as empresas] mais facilmente asseguram os fornecimentos de carne na distribuição”. Não falando das avarias na linha de abate. Nesses casos, diz a médica veterinária, a escassez de inspectores da DGAV determina que “os animais ficam por abater para o dia seguinte ou mesmo para depois do fim-de-semana, quando a avaria acontece à sexta-feira”.

O Ministério da Agricultura reconheceu, em declarações ao PÚBLICO, “a falta de recursos humanos devidamente habilitados e que exerçam funções de controlo oficial”. E diz que “tem diligenciado diversas medidas no sentido de reforçar os recursos humanos afectos à inspecção sanitária em matadouro”. Actualmente, este “procedimento encontra-se em curso e permitirá reforçar o mapa de pessoal da DGAV afecto em exclusivo a esta tarefa”. Trata-se de “um acréscimo de 61 profissionais”, diz o Ministério de Maria do Céu Antunes, revelando que, “em breve, o IFAP irá transferir verbas para a DGAV, para contratar mais 39 técnicos superiores e 100 assistentes técnicos e operacionais para realizar estas tarefas”.

A par disso, “recentemente, foram contratados, em regime de avença, quatro técnicos superiores para exercer funções de inspecção sanitária em matadouro na região do Alentejo”. O ministério diz que também “estão em curso, e a aguardar autorização, dois pedidos para contratar, em regime de avença, seis técnicos superiores para exercer funções de inspecção sanitária em matadouro na região do Norte”.

Além da Bolsa de Inspectores Sanitários criada em 2018 (Despacho n.º 3807/2018), o Ministério da Agricultura explicou ao PÚBLICO que “a DGAV também realiza protocolos com as câmaras municipais para que os médicos veterinários dos municípios possam exercer estas funções em colaboração com a DGAV”. A 15 de Outubro, Maria do Céu Antunes anunciou, em comunicado, que “reconheceu 25 médicos veterinários como Autoridade Sanitária Veterinária Concelhia, contribuindo, desta forma, para a prossecução da colaboração entre a DGAV, enquanto Autoridade Sanitária Veterinária Nacional, e as câmaras municipais, que actuam a nível local”.

‘Do Prado ao Prato’: “a última oportunidade”

Feito o diagnóstico em Portugal, há que perceber como são reguladas estas matérias na União Europeia (UE). A eurodeputada Sara Cerdas, eleita pelo PS e membro da Comissão de Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar, garante ao PÚBLICO que “o Parlamento Europeu está particularmente atento às diversas ameaças para a saúde pública”. E que, “sobretudo após o surto de encefalopatia espongiforme bovina (EEB), que ficou conhecida como a ‘doença das vacas loucas’, em matéria de segurança alimentar a UE é uma referência mundial no âmbito da protecção da saúde humana”.

E Portugal não fica atrás. “Os dados que conhecemos, quer da actuação da DGAV, quer da ASAE, revelam o empenho de Portugal nesta área”, diz Sara Cerdas, que elogia a nova estratégia europeia Do Prado ao Prato. Aqui, diz a eurodeputada, “o Parlamento Europeu tem como uma das suas principais preocupações garantir que os alimentos consumidos na UE tenham um elevado nível de segurança para o consumidor final”. E mais: esta é “possivelmente a última oportunidade que temos para tornar todo o sistema de produção de alimentos na Europa mais saudável, mais justo e sustentável”.

Marisa Matias, eleita pelo Bloco de Esquerda, é mais crítica. A eurodeputada, que integra a Comissão de Inquérito sobre a Protecção dos Animais durante o Transporte (ANIT) constituída para investigar alegadas infracções e má administração na aplicação do direito da União em relação à protecção dos animais durante o transporte dentro e fora da União, avança algumas conclusões.

“No decurso das audições que realizámos até agora constatámos que as violações mais frequentemente documentadas estão ligadas à falta de espaço no transporte, animais impróprios para transporte, sobrelotação, transporte durante temperaturas extremas e a duração das viagens”. Também há “veículos inadequados utilizados para transportar animais vivos, quer por terra quer por mar, havendo grandes diferenças entre os Estados-membros na interpretação e aplicação do regulamento relativamente à aprovação dos meios de transporte”. Não falando na “falta de harmonização dos procedimentos de inspecção e certificação dos navios de transporte de gado”. E também “não existem critérios de inspecção obrigatórios”.

Para Marisa Matias não há dúvidas: “Perante estas conclusões, naturalmente que não podemos afirmar que a segurança alimentar está plenamente garantida”.

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