A certeza perturba a curiosidade de viver

Há pessoas que atravessam a vida inteira sem ouvir as palavras que encaixam na medida do seu amor. E essa também é uma busca válida mesmo que nunca tenha fim.

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"Um erro é um pé-coxinho que acerta no quadrado da Macaca" Mag Rodrigues

Estamos as duas na casa de banho e a minha filha pergunta se tenho arrependimentos na vida. Não é uma pergunta que se esconda no vapor acumulado. Estou ciente da resposta mesmo que ela, antes de me ouvir, diga: “Não gosto de pessoas que não tenham arrependimentos.” Percebo-a. A certeza perturba a curiosidade de viver. Limita o que nos impele a avançar. A dúvida é um motor, mas eu, neste momento, não tenho ainda arrependimentos. Admito que venham com outra idade.

Estou a chegar aos 50. É estranho ainda para quem se ri de tudo e avança, quase sem medo, para a próxima pergunta.

Não me lembro de ter hesitado no amor, a minha matéria de eleição, ou de ter gasto palavras nobres em relações que não o mereciam. O raciocínio, recente, só surgiu há pouco numa daquelas conversas em que, sem querer, verbalizámos pensamentos que lá estavam e nem sabíamos: eu nunca disse que amava alguém por engano. Dizer “amo-te” é talvez a coisa mais séria das nossas vidas. Mesmo quando não sabemos.

Lembro-me, por falar em arrependimentos, quando me deixei ir em paixões que nem o eram, e eu, sempre com a mania dos elogios e das elegias sobrevalorizar o outro e receber desse lado a mais confrangedora reacção em tom de espanto: “Deve ser isso a que chamam amor.” Não era. Era o contentamento do encontro, da partilha, da descoberta do outro. Aquela pessoa, essa pessoa que nunca tinha ouvido palavras semelhantes, não sabia ainda retribuí-las. Nem tinha de o fazer. Há pessoas que atravessam a vida inteira sem ouvir as palavras que encaixam na medida do seu amor. E essa também é uma busca válida mesmo que nunca tenha fim.

No vapor de um banho prolongado, a ausência do meu arrependimento manteve-se intacta. Limpo o espelho e vejo com a nitidez possível o meu passado. Certifico-me de que disse tudo o que me apeteceu dizer. Fui ao que tinha de ir. Vi tudo o que queria e até o que não desejava, mas esse não querer nunca foi arrependimento, foi aprendizagem.

As pessoas que voltam ao erro como se ele fosse o ponto de partida, esquecem-se de que o podem reverter em qualquer coisa de positivo. Um erro é um pé-coxinho que acerta no quadrado da Macaca. Não é por estar apoiada só numa perna que vou errar, mas, mesmo se errar, não caio por ter falhado ali momentaneamente.

A minha filha faz-me a pergunta na casa de banho que é nossa e leva-me de imediato ao raciocínio. Talvez seja a minha divisão preferida que ocupo sem querer. O raciocínio tem espaço que não acaba. É nele que me expando sem medo da forma ou do espaço que me pertence. Todo ele me pertence. Nós delineamos a fronteira.

Não tenho arrependimentos. Nem do que comi nem do que bebi. Nem do que dancei nem do momento em que decidi parar. Nem do que disse ou do que calei. Calar também é uma arte. Respirar sobre o que vivemos. Decidir depois o que escolhemos dizer antes que o impulso fale por nós.

Nos momentos em que errei, muitos, voltei atrás que já era mais à frente para dizer: “Desculpa-me.” O ‘desculpa’, às vezes, parece pouco. Temos de nos pôr ali.

Voltei ao momento do erro para dizer que fui indecente, egoísta, orgulhosa. E, sim, vamos morrer sem nunca termos dito vezes suficientes: “Desculpa-me.” Sinto um alívio imenso por o poder dizer. Por não ter nenhuma incapacidade de o fazer. Por voltar atrás que já era então em frente.

No vapor do banho da minha filha (uma névoa que se dissipará mais tarde ao contrário dos meus arrependimentos) sinto-me estranhamente tranquila por nunca os ter tido. Não é teimosia. Sei que fui sempre longe nas respostas mesmo quando no dia seguinte ia corando de vergonha, mas se as palavras estão rente à boca é porque tinham de sair. E quando estão longe é porque não rondam o coração. Nós sabemos muito bem o queremos ou não dizer. Enganamo-nos muitas vezes por vergonha, falta de coragem, medo, incerteza.

O que me faz não ter arrependimentos é essa sorte de ter as palavras na boca. Até quando depois as tive de engolir, mas, até nessas alturas, outras as suplantaram para dizer: desculpa. “Desculpa-me.”

No amor e no resto, as palavras estão à nossa frente. É galopante esse poder. Temos de as aceitar para não dar lugar ao arrependimento.

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