O segredo para permanecer juntos, mesmo depois dos filhos

Gosto de como o Aldo Naouri explica aos pais que a família deve funcionar como um triângulo invertido, em que lá em cima estão os pais e a relação dos pais, e cá em baixo o filho, e que é a relação lá de cima que é a prioritária.

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@designer.sandraf

Querida Mãe,

Lembra-se da carta em que comparei o trabalho de mãe ao trabalho de um empresário, em que falámos de como a exigência de gerir uma família é intensa, complexa, constante e altamente desvalorizada? Pois, fiquei a pensar nisso, e lembrei-me de como a mãe me dizia como era fácil os casais tornarem-se apenas sócios da empresa “família”, com pelouros e turnos alternados. Hoje compreendo melhor a metáfora. Nada me parece mais familiar do que a imagem de uma mãe a olhar para o relógio-de-ponto ao fim do dia, ansiosamente à espera do final do seu turno, e que mal o marido roda a chave na porta, lhe atira o bebé para os braços, e desaparece (nem que seja para ir tomar um duche, porque nem para isso teve tempo).

Sobretudo nos primeiros meses de um bebé, muitas vezes isolados e assoberbados, os pais jogam à estafeta e tentam recuperar forças enquanto o outro corre. Se durante uns meses parece uma mais-valia, a verdade é que com o rebuliço do dia-a-dia, novas gravidezes, novos filhos, empregos mais exigentes e stress acrescido, pode chegar o momento em que perdemos a noção da última vez que olhámos com olhos de ver para o outro adulto que temos em casa. E subitamente reparamos que há muito tempo que não falamos um com o outro, excepto para passar a pasta, ou dar recados.

Secretamente, parece-me que sobretudo as mulheres, vão registando os desencontros, vão reparando nas distracções e omissões, e percebem a distância a crescer, mas faltam-lhes as forças para agir, estão tão exaustas que vão deixando passar. No íntimo parece-me que rezamos para que seja ele a salvar-nos daquele estado de piloto-automático, a encontrar uma forma de derreter o gelo funcional em que nos congelámos... Mas provavelmente os homens sonham com a mesma coisa.

Para agravar tenho a ideia, sem qualquer fundamento científico, confesso, de que eles precisam do toque físico para se aproximarem, e as mães nos tempos (mais ou menos longos) do pós-parto querem é que não lhes toquem, e as deixem descansar e aproveitar todos os momentos para por o sono em dia, ou ver uma série que a aliene do mundo. Ou qualquer coisa por aí.

É claro que os avós preocupados e generosos apressam-se a sugerir que os filhos despachem para casa deles os miúdos e vão passar uma ou duas noites sozinhos. Mas a minha sondagem entre amigas diz-me que entre o stress de pedir favores, de gerir a logística de os deixar, somada à pressão que se coloca no casal por ser “a noite” em que tudo é suposto acontecer, a solução acaba muitas vezes por ser contraproducente.

Então como? Como impedimos a falha teutónica de crescer tanto que, um dia, se torna um abismo?


Querida Filha,

Infelizmente acho que a minha tese dos casais/sócios é profundamente verdadeira, e que muitos casamentos caem por terra porque, devagarinho, as pessoas começam a funcionar por turnos, e a ter entre si uma relação mais de parceria do que de paixão. Por exemplo, já reparaste — já reparaste com certeza! — que, muitas vezes, o único momento em que podem jantar sossegados, ir a um concerto ou a um bar com amigos, fazer uma viagem (de trabalho, que seja) é se o outro ficar com os miúdos? Ao princípio parece a solução mais fácil e prática, porque as crianças ficam sem refilar, na sua rotina habitual, sem ser preciso sobrecarregar avós, permitindo que aquele que tem o “programa” possa partir sentido-se mais leve e despreocupado. Mas, digo eu daqui do meu lugar de avó, mas de quem já foi mãe e passou por tudo isso, pode ser complicado quando os momentos de adrenalina acontecem sem o outro, quando é fora de casa que os outros nos percebem como homem/mulher e não apenas como mãe/pai.

É inevitável que seja assim? É claro que não é, mas exige planeamento e esforço, exige o apoio dos avós, ou de outras parcerias, mas suspeito que exige sobretudo reequacionar as prioridades e resolver a eterna culpabilidade que sentimos em relação aos filhos, sobretudo quando a profissão nos exige tanto que ficamos sempre com a sensação de que todos os tempos livres têm de ser dedicados às crianças.

Gosto de como o Aldo Naouri explica aos pais que a família deve funcionar como um triângulo invertido, em que lá em cima estão os pais e a relação dos pais, e cá em baixo o filho, e que é a relação lá de cima que é a prioritária. Choca as mães, não é fácil de implementar, mas à medida que os anos passam cada vez mais me convenço que tem razão: é sobre a trave da relação do casal que tudo o resto se constrói, e se falhar, a “sociedade” vai para insolvência.

E, Ana, se perguntarmos aos filhos o que é que eles mais querem/queriam na vida, mesmo aqueles cujo divórcio dos pais correu pacificamente, aposto que vão responder que desejariam que os pais tivessem ficado juntos. E, objectivamente, também o casal o desejou. Parece-me que ter a consciência disso ajuda a suportar e superar as birras que inevitavelmente vão fazer quando lhes dizemos que os pais vão passar um fim-de-semana sozinhos, ou vão sair para jantar fora os dois, ou para se reunirem com os amigos com quem não estão há tanto tempo. E, há mais, suspeito que esta separação temporária dos pais, a consciência de que eles são primeiro um para o outro, ajuda os filhos a encontrarem também outras relações e outras fontes de segurança fora de casa, e isso não só é bom, como abre a porta a mais liberdade para o casal.

Só queria dar mais um conselho a todos os pais — sabes bem que eu sempre quis ter uma agência de casamentos — façam isto enquanto vos “apetece”. Parece leviano, mas não é, porque as coisas partem-se dentro de nós muito antes de termos consciência de que quebraram, e quando mesmo depois de duas noites bem dormidas já não encontramos em nós a vontade de estar com o outro, de investir naquela relação, tudo se torna muito mais difícil e doloroso. Por isso, sim, não hesitem em pedir ajuda aos avós que, como os netos, acima de tudo querem é ver os filhos casados e felizes.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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