Um bocadinho de nada

É provável que à 25.ª hora não aconteça uma crise política. Mas, caso exista, também não é o fim do mundo. É só a democracia a funcionar. E se há perfume de princípio de fim de ciclo, com eleições antecipadas o PS é capaz de perder menos do que daqui a dois anos. E o PCP e o Bloco de Esquerda também.

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A língua portuguesa tem expressões maravilhosas e “um bocadinho de nada” é uma delas. Se nada é zero, um bocadinho de nada, o que é? Mas usamos muitas vezes a frase para classificar situações em que apenas desejamos “poucochinho”, para usar a palavra favorita de António Costa para qualificar a vitória nas europeias de 2013 de António José Seguro. Quando Costa falou no “poucochinho” de Seguro, o país percebeu que o presidente da Câmara de Lisboa tinha acabado de cortar com o então secretário-geral do partido.

Hoje, quando os partidos à esquerda do PS vêm dizer que o Orçamento é “um bocadinho de nada” face às suas reivindicações, a doutrina divide-se: a corda parte ou não parte? O Governo cederá na 25.ª hora ao PCP e/ou Bloco de Esquerda alguma coisa de substancial? A convicção de Costa de que tinha o PCP no bolso, como foi notória na intervenção do primeiro-ministro no último debate parlamentar, quando se dirigiu quase paternalmente a Jerónimo de Sousa, alguns anos mais velho, a explicar-lhe que os comunistas iriam ficar “menos preocupados” quando olhassem para o Orçamento, plenamente certo, como disse, de que “o PCP não iria falhar o compromisso que tem com o povo português”, não deve ter ajudado nada. Se para o Bloco, a ruptura já não é uma novidade, o PCP acabou de sair de umas eleições ainda mais fustigado do que nas autárquicas de 2017. A descida do PCP pode ter várias justificações, mas há quem a explique pelo simples facto de, ao ser o seguro de vida de um governo centrista, que depois cativa verbas e não cumpre as medidas inscritas no Orçamento, estar a perder influência entre o eleitorado tradicional.

Dará, seguramente, uma excelente tese de doutoramento em Ciência Política o facto de ter sido possível a António Costa fazer durante seis anos uma governação claramente ao centro, apoiado em dois partidos como o PCP e o Bloco de Esquerda. Se a vitória nas eleições de 2015 permitiu os acordos à esquerda e ganhos na recuperação de rendimentos cortados pela troika – e também uma retórica “esquerdista” que inundou praticamente todo o PS, mesmo alguns dos mais improváveis socialistas –, a verdade é que, na segunda parte da última legislatura, o Governo PS começou a funcionar como se tivesse maioria absoluta, até no tom com que decidiu passar a relacionar-se com os parceiros de esquerda.

Se comparamos o congresso do PS de 2018 com o congresso de 2016, concluímos que as odes aos partidos que permitiram a Costa formar governo, presentes em 2016, desapareceram em 2018. Em 2016, pela primeira vez na sua história, o congresso do PS aplaudia Bloco de Esquerda e PCP. Em 2018, a um ano e meio das eleições legislativas, a referências aos “parceiros de esquerda” volatilizaram-se. Era o velho PS centrista a reemergir, depois da maçada que tinha sido fazer os acordos com o Bloco de Esquerda e o PCP para chegar ao poder.

O PS anti-troika (lembram-se? Existiu!) não é compatível com um PS centrista no Governo (aquilo de que António José Seguro era acusado na oposição, também se lembram?) que recusa sistematicamente abolir a legislação herdada dos tempos da troika. As coisas não batem certo. Se em 2015 o PS sabia que precisava de uma “geringonça” para formar governo, a vitória de 2019 permitiu a António Costa e à sua incrível auto-suficiência dispensar acordos formais. O PCP não quis o acordo para não comprometer ainda mais a sua base eleitoral. O Bloco queria fazer o acordo – e ainda quer –, mas o PS detesta o Bloco: independentemente das simpatias ou antipatias pessoais, é verdade que há uma competição pelo mesmo eleitorado.

É provável que à 25.ª hora não aconteça uma crise política. Mas, caso exista, também não é o fim do mundo. É só a democracia a funcionar. E se há perfume de princípio de fim de ciclo, com eleições antecipadas o PS é capaz de perder menos do que daqui a dois anos. E o PCP e o Bloco de Esquerda também. Mas como a maioria absoluta não está nos planos da pólvora, o pântano continuará. É no que estamos.

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