A cidade: no tempo e no espaço

Hoje, continuo a ter uma avó a residir na Graça. Vive na mesma rua há cerca de 70 anos. Antes conhecia toda a gente, tratava os donos do comércio local pelo nome, não tinha receio de deixar a porta de casa aberta. Hoje conhece uma vizinha.

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Nicolau Botequilha

As cidades são territórios que geram problemas e que, ao mesmo tempo engendram soluções. São um terreno fértil para a ciência e tecnologia, a inovação, a cultura e a criatividade individual e colectiva, mas são, também, locais onde se concentram problemas de desemprego, desigualdade e exclusão social. A cidade vive, assim, um processo de crescimento urbano contínuo que é resultado da nossa leitura e reinterpretação sobre a realidade e que reúne em si um conjunto de referências sociais e culturais que se distinguem das referências da mesma cidade de outros tempos.

Gostaria de introduzir um exemplo que mostra os “vários tempos” de uma cidade e a prova de que esta é uma construção adequada aos tempos dos grupos sociais que coexistem neste espaço. Com família materna a residir no Bairro da Mouraria e com família paterna a residir no Bairro da Graça – ambas com origem na zona Norte/interior do país – e que nos 40 migraram para a capital em busca do “sonho urbano”. Tenho ainda memória – de vivência e de conversas partilhadas  de estes bairros, localizados em plena Baixa de Lisboa, funcionarem como genuínas comunidades. Todos se conheciam, todos se tratavam pelo nome, todos davam uma “ajudinha” no que fosse preciso.

Existia ainda aquilo a que hoje se designa por solidariedade intergeracional. Os mais novos davam uma ajuda aos mais idosos que por força da idade e estado de saúde não tinham a vitalidade de outros dias para o desempenho das funções. Também em contexto de rua, os jovens mais velhos olhavam pelos mais novos. Os mais velhos por estarem já reformados acabavam por ser os vigilantes das crianças e jovens. O bairro – aqui representado pela Mouraria e pela Graça, mas certamente com eco também em outros bairros da cidade de Lisboa – era entendido como um local de segurança e coesão, onde todos se conheciam.

Hoje, continuo a ter uma avó a residir na Graça. Vive na mesma rua há cerca de 70 anos. Antes conhecia todos os vizinhos, tratava os donos do comércio local pelo nome, não tinha receio de deixar a porta de casa aberta, confiava o seu filho – meu pai – na vizinha para que olhasse por ele durante umas horas e confiava no filho da vizinha para lhe aviar algumas compras mais pesadas. Hoje conhece uma vizinha – que viveu com ela a experiência de chegar a Lisboa com pouco mais de 18 anos e o tal “sonho urbano”. Mais do que isso, viveram juntas – e com a comunidade da altura – a luta pelo Bairro da Graça, de garantir melhores condições de habitação, de serem asseguradas condições de higiene e saneamento, de serem providenciadas escolas e actividades – como o futebol – para os meninos da Graça.

Sei que hoje ainda se juntam muitas vezes para falar do “outro tempo”. Do tempo que se sentavam na rua a conversar, a partilhar angústias e receios, a recordar a aldeia que ficou para trás. Hoje não conhece os vizinhos, porque muitas vezes são estrangeiros e não falam português ou estão só de passagem – devido ao proliferar das unidades de alojamento local e hostels. Hoje é incapaz de deixar a porta de casa aberta, os donos das antigas mercearias também já não existem e as compras mais pesadas são agora responsabilidade única da família, não havendo nenhum vizinho de confiança.

Diz-me a minha avó que antes era mais fácil passar o tempo. Diz-me também que gosta muito de ver os turistas a maravilharem-se com o bairro dela. O “sonho urbano” foi em certa medida conquistado, no seu tempo e na sua época. Seguem-se agora muitos outros sonhos urbanos.

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