A correcção

A relação com os nossos pais é parte do que somos. Qualquer liberdade amordaçada se torna num lugar perigoso. Quando a mordaça cai, é a raiva e não o alívio que ganha forma.

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"Às vezes basta um deslize breve para a vida toda nos escapar" Mag Rodrigues

Um rectângulo austero que se avista à entrada da cidade. O soalho está agora “descascado”, disse alguém.

Durante muitos anos cresci sob a ameaça de lá ir parar. A infância faz-se de lugares fantasma que às vezes existem mas que nunca os vemos ou visitamos.

Um dia, na escola, fomos em visita. Era a Casa de Correcção.

O meu pai, mais espartano, tinha regras muito definidas para a nossa vida. Não visitávamos cafés, não acendíamos luzes desnecessárias, não podíamos usar o telefone que não fosse para um recado, não gastávamos um tostão mal gasto até porque o mealheiro estava leve. Levitávamos naquela parca existência, não estivesse ela carregada de sérios avisos.

Eu e a minha mãe planeávamos estratégias clandestinas para contornar essa vida poupada: à noite quando ele adormecia, barricávamo-nos na sala com iguarias simples, as possíveis na altura: amendoins, bolachas torradas, marmelada com queijo. Coisas que nos parecem agora demasiado antigas para lhe vermos valor. Eu vejo ainda e sei a que sabem. Acontece que o meu pai de vez em quando acordava e aparecia-nos castigador lembrando que a comida era só para “a hora das refeições”. Estremecíamos.

O meu pai foi sempre peculiar. O medo que lhe tinha pode explicar muitas coisas. A relação com os nossos pais é parte do que somos. Qualquer liberdade amordaçada se torna num lugar perigoso.

Quando a mordaça cai, é a raiva e não o alívio que ganha forma.

O meu pai ameaçava falar com uma senhora que eu não conhecia para ir trabalhar para uma fábrica que eu não desejava. Era uma espécie de castigo latente no horizonte. Eu desvalorizava aquelas palavras sabendo que era uma realidade possível e que nunca estaria nos meus planos. Lembro-me mais tarde nas viagens para o Porto de o comboio parar ali em frente e de eu ver a fábrica concluindo que a ameaça era mesmo real.

Percebem como o mundo mudou? Que pai pode assustar os filhos acenando com a possibilidade de um emprego numa fábrica, caso não estudem?! As pessoas estudam e podem ir parar a uma fábrica. Não há nada de errado nisto. Todos os empregos são hoje valorizados e isso é uma mudança e tanto de mentalidades.

Na altura, eu não queria ir trabalhar para a Nórdica (era o nome da fábrica) nem que ele falasse com a encarregada do meu castigo. A vida já se encarrega das suas insondáveis punições…

Voltemos ao rectângulo austero que se avista ainda hoje da ponte: majestático, imponente, assustador. O sofrimento que um lugar daqueles encobre, pesa-me no olhar. A casa de correcção era um lugar para onde iam miúdos cuja vida não permitira outras escapatórias. Iam porque se tinham portado mal? Iam porque os pais tinham perpetuado cenários de desconforto e miséria? E eles, que hipóteses tiveram antes? Tantas perguntas sem resposta. Era um facto que os miúdos iam lá parar. Eu vi-os pequenos a trabalhar nas oficinas de um sítio labiríntico onde o soalho (agora descascado) reluzia. Sinto ainda o cheiro a madeira que inundava o refúgio dos insurrectos.

Lembro-me de lá irmos em visita de escola e agora penso que nada havia de lúdico naquilo. Era só um aviso: vocês também podem acabar aqui.

Os miúdos assistiam imperturbáveis à nossa visita. Éramos do tamanho deles. Sim, do tamanho do que víamos. Eles estavam ali e não na escola porque algo tinha corrido mal.

A casa de correcção (também lhe chamavam reformatório e todos esses nomes são calafrios que a história repetiu sem pressa de pensar em modelos sem dor) foi em tempos, um convento. As histórias ali nascidas têm sempre um toque de tragédia que me perturba.

Passo de carro frente ao rectângulo austero e não cabe no meu olhar o que ali adivinho. É passado mas nós não podemos esquecer o sofrimento dos outros apenas porque já terminou. Os lugares e quem neles opera, condicionam vidas e fazem da de alguns, uma trajectória insuportável de dor e de azares.

Tive sorte de nunca ter ido parar à fábrica, ao reformatório, aos amigos que não desejei, à família que não me acolheu.

Às vezes basta um deslize breve para a vida toda nos escapar.

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