Um Orçamento fundamental

O Governo recusa-se a desfazer os nós que a troika deixou na legislação laboral: desprotegeu trabalhadores e a contratação coletiva, embarateceu despedimentos e promoveu a precariedade. É caso para perguntar: nas questões laborais há PS para além da troika?

A página da pandemia parece já estar escrita nas suas grandes linhas, pelo menos no território nacional, mas os efeitos sociais e económicos que criou estão ainda longe de serem ultrapassados. Nas escolhas em que determinamos o nosso futuro decidiremos como construir um pós-pandemia que não seja meramente o regresso ao passado das nossas imperfeições.

O Orçamento do Estado para 2022 é uma peça fundamental para os primeiros passos a dar. Materializa o plano para a recuperação económica e lança caminho para os grandes objetivos a traçar. Mas quais são essas metas? Essa é a questão fundamental, só sabendo para onde se vai é que se podem dar os passos certos para lá chegar. Por vezes, o caminho até pode nem ser linear, mas o que interessa é não perder o norte. Será que é isso que está a acontecer?

Desde 2015 o caminho foi de recuperar o país de todas as maldades feitas no período da troika. Foi um caminho importante, com desafios vários que se conseguiram ultrapassar. A urgência das decisões na defesa de direitos e liberdades ocultou várias insuficiências que se foram manifestando com mais premência à medida que o tempo passava. A pandemia expôs algumas dessas dificuldades, da enorme precariedade laboral (em particular dos jovens) à falta de investimento em serviços públicos. É tempo de aprendermos com esses erros quando temos na mão tanto para construir.

Sabemos do que dizia António Costa sobre as alterações às leis laborais: não era tempo para isso em 2016, porque a mudança de ciclo tinha acabado de acontecer. Não era pertinente em 2017, não era prioridade em 2018 e em 2019 acabou por se juntar ao PSD para alargar o período experimental - mexeu para pior. Mas a pandemia pareceu uma epifania nesta matéria e o primeiro-ministro foi a uma conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirmar categoricamente que “esta crise pôs em evidência as fraturas profundas da nossa sociedade e o preço que pagamos pela excessiva desregulação de tudo aquilo a que nos habituamos a chamar mercado de trabalho”. Só que o ponto de viragem ficou na retórica, porque o Governo se recusa a desfazer os nós que a troika deixou na legislação laboral: desprotegeu trabalhadores e a contratação coletiva, embarateceu despedimentos e promoveu a precariedade. É caso para perguntar: nas questões laborais há PS para além da troika?

No que toca ao investimento público, a querela entre Pedro Nuno Santos e João Leão mostra bem a dimensão do problema. As gavetas do Ministério das Finanças têm o poder de silenciar (e paralisar) as decisões estratégicas do Conselho de Ministros. E, por ter sido mais estruturado em Bruxelas do que em território nacional, o Plano de Recuperação e Resiliência português peca por defeito em alguns dos problemas estruturais do país, como é o caso da habitação. Falha ainda na defesa da qualidade dos serviços públicos.

Vejamos o que aconteceu no SNS nestas últimas semanas. As demissões de profissionais descontentes com a permanente desvalorização do seu trabalho e das suas carreiras é a ponta de icebergue das fragilidades que há num plano curto para enfrentar os desafios pós-pandemia. As sequelas da covid-19, a recuperação da atividade que foi adiada ou protelada e a resposta aos desafios que coloca o envelhecimento da população mostram que a manta é demasiado curta para cobrir as necessidades estratégicas. As promessas de mais profissionais caem como castelo de cartas quando vemos os concursos que ficam vazios ou a população sem médico de família a aumentar. E não há estratégia à vista para resolver este problema.

O aumento do custo de vida, que tem na energia apenas um dos problemas, é outro dos perigos a pairar. A inflação começa a acelerar e bens essenciais a aumentar o preço. A política de rendimentos do Governo não é ambiciosa o suficiente para enfrentar este perigo e atacar a desigualdade. Por outro lado, falta-lhe a sensibilidade e a justiça para sarar uma das feridas que ainda dói na vida de quem trabalhou uma vida inteira e sentiu o corte absurdo do fator de sustentabilidade na sua pensão e na sua dignidade.

São escolhas, é certo. São sempre. Mas há momentos em que essas escolhas são mais fundamentais e que o erro não é admissível. Ainda estamos a tempo de emendar a mão e corrigir estes erros, mas não temos a eternidade para o fazer.

Pedro Filipe Soares é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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