Justiça e traços de personalidade

A Justiça tem muito a ganhar com o recurso às perícias de Psicologia Forense.

O recente desaparecimento para parte incerta de João Rendeiro (JR), que assim se furtou ao cumprimento da(a) pena(s) de prisão a que estava condenado, desencadeou um clamor de indignação nacional mais ou menos generalizado, enxovalhando de novo a imagem da justiça portuguesa. Até a própria ministra da Justiça se pronunciou sobre o assunto, referido que a fuga do ex-banqueiro gerou “desconforto social” extensível ao sistema de justiça.

Este sistema de justiça apressou-se, entretanto, a responder à “declaração” de JR que afirmou não ter intenção de regressar a Portugal, já que, nas suas próprias palavras, a fuga que encetou foi um “ato de legítima defesa contra uma justiça injusta”. Foram assim passados os competentes mandados de detenção europeu e internacional pela juíza que o condenara em maio passado.

No meio da polémica instalada, que remete mais uma vez para pesos diferentes da justiça em função da condição social dos arguidos/condenados, não deixam de ser interessantes os argumentos invocados para não se ter adotado, previamente, uma medida de coação mais restritiva para JR, a começar por exemplo pela retenção do seu passaporte, ou mesmo o recurso a apresentações periódicas regulares em posto policial. A fazer fé no que foi publicado em vários órgãos da comunicação social, a magistrada que condenou JR a dez anos de prisão constatou “o perfil displicente” exibido por JR durante o julgamento, mas alegou, contudo, que “os traços de personalidade dos cidadãos, ainda que condenados, por si só, isto é, desacompanhados de factos que indiciem um perigo de fuga, não são aptos nem suficientes à aplicação de medida de coação diversa do termo de identidade e residência”. Esta argumentação acerca dos “traços da personalidade” é deveras interessante, já que pretende dissociar o crime da pessoa que o comete, como se aparentemente fossem duas entidades distintas quando assim o não é.

Há um conjunto de características ou dimensões da personalidade que a investigação de há muito evidenciou como estando mais associadas ao cometimento de crimes: a impulsividade, a agressividade, o baixo autocontrole, a busca de sensações, para só citar algumas. Estas e outras dimensões podem conjugar-se entre si naquilo que costumamos designar por desordens da personalidade, isto é, uma constelação de fatores particularmente problemáticos que são detetáveis em muitas pessoas que cometem crimes.

Tipicamente, a desordem da personalidade que com mais frequência surge associada ao crime é a desordem da personalidade antissocial, mas para os crimes mais violentos é mais provável que se trate de psicopatas ou portadores da desordem da personalidade borderline. Outras desordens da personalidade como a narcisista, que envolve sobretudo a exibição de um padrão comportamental de grandiosidade e de necessidade de adulação, também são comuns, sobretudo em criminosos de colarinho branco, que creem estar acima da lei, que apenas foi concebida para gerir a vida de comuns mortais que não eles.

A execução de perícias da personalidade a cargo de psicólogos forenses é um procedimento que pode ajudar o tribunal a perceber melhor quem é a pessoa do arguido (ou da vítima) e, nesse sentido, pode fornecer elementos fundamentais para a tomada de decisão. Quando a magistrada refere que JR exibiu um “perfil displicente” estaria a basear-se nalguma avaliação psicológica forense ou apenas na sua capacidade de análise construída de um saber de experiência feito? É que a displicência vai de par com a arrogância e juntas contribuem muito para criar uma aura de intocabilidade de que muitas destas personagens se arrogam quando “apanhadas” nas maroscas que engendram.

Advogo, pois, que a Justiça tem muito a ganhar com o recurso às perícias de Psicologia Forense como meio de prova para estabelecer a culpabilidade ou inocência dos arguidos, já que as mesmas permitem equacionar com um grau de probabilidade muito razoável em que medida certas características da personalidade podem ajudar a predizer o comportamento futuro de quem as exibe. Não se trata de procedimentos divinatórios, mas de resultados baseados na evidência empírica e científica, que podem sustentar de forma credível as decisões judiciais. Não sei se JR foi submetido a alguma perícia da personalidade, mas se não foi devia ter sido. Talvez que desse modo a convicção de quem julgou pudesse exibir um pouco mais de excesso e menos defeito, porque quando se tem tanta certeza da culpabilidade de alguém, temos igualmente de assumir sem tibieza o exercício da autoridade. Que como se viu, foi mais uma vez, lamentavelmente, menosprezado.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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