Um capítulo de Somos todos estranhos - até percebermos que isso é normal de António Raminhos

O humorista escolheu o capítulo 9 - “Dá-me um irreal, um imaginário...” - do livro editado pela Contraponto e que chega esta quinta-feira às livrarias. Num testemunho honesto, António Raminhos escreve sobre problemas de ansiedade com o objectivo de contribuir para a normalização da saúde mental.

Foto
Mário Santos/Contraponto Editores

É impressionante a máquina que temos ao nosso serviço. A mente encontra sempre um caminho para nos dar aquilo em que acreditamos de forma inconsciente. Não o fazemos por culpa nossa, não é um sofrimento desejado de plenos poderes, mas resultado de experiências, da habituação, de desequilíbrios fisiológicos ou neuroquímicos. Se, de alguma maneira, vejo que uma situação é potencialmente perigosa ou negativa para mim, a minha cabecinha brilhante vai encontrar um modo de me avisar. Não porque me queira mal, não por vingança, não para se divertir, mas, curiosamente, porque me quer proteger. Porque, em determinada altura na minha vida, de forma inconsciente, sem me aperceber, disse: «Isto mete‑me medo. Isto preocupa‑me.» E, assim, em todas as situações idênticas à que identificámos como negativa, a mente estará lá para nos avisar. É mais simples do que se pensa. Se, por alguma razão, tiver medo de contaminação, por exemplo com poeiras que posso respirar, vou evitar zonas de obras. Mas facilmente posso começar a receber outro tipo de avisos: «Essa pessoa com quem estás a falar tem roupa de obras… pode ter estado no pó!», «Fecha a janela do carro… olha aí um camião ao teu lado, pode ter vindo das obras», «Não respires agora! Olha, lá em baixo está alguém a descarregar entulho!». E, mais uma vez, reforço, de forma inconsciente. Ninguém tem culpa. Ninguém quer sofrer porque gosta! Excepto na cama, mas isso são só alguns.

O mesmo tipo de ligações funciona para quem lida com outros temas. Se acreditar, por experiências que tive, por via da minha educação, etc., que sou mau em algo como relacionar‑me com os outros, é provável que vá evitar pessoas. Naturalmente, fico mais vigilante, perco o sono, começo a entrar num registo mais depressivo, pode haver um défice de dopamina ou outras substâncias que não controlo, e, rapidamente, começo a viver em função de pensamentos e associações mentais como: «Vais sentar‑te nesta esplanada sozinho? E se alguém vem perguntar‑te as horas?»

Quem sofre de agorafobia, que se relaciona com sensações de constrangimento, descontrolo e, sobretudo, medo de estar em ambientes desconhecidos, vai evitar essas situações. Mas, um dia, até pode estar a divertir‑se numa festa e, do nada, pensar: «Estás a beber muito, vais perder o controlo e vomitar e fazer uma cena!» Algo que poderia facilmente ter sucedido comigo! Não propriamente panicar, mas ficar com os copos e armar uma cena. No entanto, não vinha mal nenhum ao mundo por isso, apenas uma história esquisita para contar.

Tenho uma amiga que, certa vez, teve um ataque de pânico (dos tais que surgem sem aviso) depois de comer uma sandes de delícias do mar. Resultado? Nunca mais foi capaz de comer sandes de delícias do mar, porque internamente e, sem consciência, a sua mente associou a ideia: «Se comeres sandes de delícias do mar, vais ter um ataque.» Na realidade, acho que ela não deveria comer sandes de delícias do mar simplesmente por serem uma bosta. E esteve três anos até conseguir ultrapassar aquele trauma. Quando finalmente conseguiu pôr‑se à prova, e perceber que nada aconteceu, ficou muito feliz! Era vê‑la a gritar pelas ruas: «Comi uma sandes de delícias do mar! Comi uma sandes de delícias do mar!» Quem se cruzou com ela, até deve ter pensado: «Quero ir àquele restaurante! Devem ser ótimas!»

O meu sogro, há alguns anos, apanhou uma bebedeira a comer presunto e a beber vinho branco. Resultado? Nunca, mas nunca mais… comeu presunto! Nada que ver com um transtorno, mas também aqui o inconsciente criou uma associação pouco verosímil.

Foi exatamente o que aconteceu nesta situação das bolachas. Fui para a sala, com aquele sentimento de condenação, de estar a brincar com a minha vida. Como era possível o psicólogo estar a pôr‑me em risco? Mas, qual Nostradamus da Psicanálise, aos poucos também começou a verificar‑se aquilo que ele me tinha explicado: a ansiedade é desagradável, mas não mata. E, depois de atingir o seu pico, a agonia começou a baixar.

Semana após semana, o exercício começou a ganhar outras dimensões. Da cozinha, passou para a entrada de casa, no prédio. O prédio passou para a rua e da rua para o mundo! Tornei‑me a melhor pessoa a comer comida do chão! Possivelmente, terei batido um recorde do Guinness, o da «pessoa que come mais comida do chão sem ter necessidade de o fazer». Certa vez, numa festa de aniversário de um sobrinho, num salão alugado, peguei num conjunto de batatas fritas, atirei para o chão, peguei e comi. O meu sobrinho, com os seus 12 anos, olhou enojado para mim, enquanto eu me ria e lidava ao mesmo tempo com a ansiedade de pensar: «Se ele sentiu nojo, é porque se calhar há algum problema!»

Foram vários os exercícios do género que fui fazendo ao longo do tempo, e sobre os mais variados temas. Desde comer saladas que não fossem confecionadas por mim e lidar com a obsessão de «e se quem a preparou se cortou?», até voltar a experimentar comer carne de vaca. Estava muito presente em mim o medo da doença das vacas loucas e comer carne bovina era algo a evitar. Lembro‑me de pedir um bom bife, de ótima qualidade, e de nem sequer o conseguir apreciar. Limitava‑me a comer e a lidar com a ansiedade. Comer um hambúrguer era um acontecimento.

Nos refeitórios dos estúdios onde trabalhava foi estabelecido como exercício comer o que os meus colegas comiam, isto porque associava a comida de refeitório a comida de fraca qualidade, sujeita a menos controlo e por isso com mais problemas. Comer o que eles comiam era uma espécie de condenação conjunta e tirar‑me o poder de escolher em função do que eu poderia achar seguro. Se eu trabalhasse na segurança alimentar, metade dos refeitórios deste país estariam fechados. A ideia geral era não ter comportamentos especiais, mas seguir a norma, o que, no meio da insegurança mental, até dava algum conforto.

Ao mesmo tempo, fui aprendendo algumas técnicas de exposição apenas mental para lidar com situações que não são palpáveis. Apesar de certos medos e obsessões estarem aparentemente resolvidos, volta e meia apareciam. Na verdade, ainda aparecem.

Uma das práticas mais comuns é imaginar o pior cenário possível quando deparamos com um pensamento obsessivo. Para relativizar, mas também para diferenciar de um modo claro que pensar não é fazer, não são equivalentes. Algo que não é assim tão claro no processo obsessivo‑compulsivo. Não raras vezes estava com uma das miúdas ao colo e era assolado pelo seguinte pensamento: «E se deixar cair a miúda de propósito? E se lhe bater violentamente?» Esta ideia, por surgir de um modo inesperado, e por eu saber que não era real, era fonte de ansiedade extrema; então, em vez de pôr a miúda no chão ou de a entregar à Catarina, o exercício passava por ficar com ela ao colo apenas a sentir aquela sensação e criar um diálogo interno catastrófico: «Sim, vou deixá‑la cair e depois? Depois ela vai aleijar‑se? E depois? Sou o pior pai do mundo! E quê? Claro, nunca vai perdoar‑me! Pior: pode cair e morrer! E depois? Se ela morre, o que faço da minha vida? Prefiro ficar preso o resto da vida…» No final, pensasse eu aquilo que a minha imaginação conseguia criar de mais assustador, nada se traduzia em comportamentos. Isto ajudava a separar os pensamentos da realidade, mas também aumentava a minha perceção de controlo. Ao mesmo tempo, trazia‑me uma certa sensação de liberdade, o sentir que podia pensar mais livremente, sem ter que estar sempre com medo das consequências «terríveis» que temia.

Outra hipótese era ridicularizar a situação. Levá‑la ao extremo oposto. Algo do género: «Sim, vou deixar a miúda cair, e depois? Depois, quando ela cair, ainda lhe vou dar umas biqueiradas valentes! E depois agarro na miúda e monto uma baliza, meto‑a na baliza, vou buscar uma bola e enfio‑lhe umas bujardas na fuça. E depois? Quando chegar a mãe, digo que a miúda quis jogar futebol …»

Qualquer um destes cenários é horrível de se imaginar. É algo de uma ansiedade extrema e intensa. Mas, mais uma vez, o resultado é o mesmo: a aflição é desagradável, mas não mata e tem o seu limite. A partir daí, começa a baixar. O mais fascinante neste tipo de exercícios é que, a certa altura, é como se a nossa própria mente nos dissesse: «Porra, desisto! Este gajo é pior do que eu! Vou arranjar outra merda com que me preocupar!»

Mas, atenção, é fundamental compreender que estes exercícios não devem ser executados sem supervisão parental, que é como quem diz, sem o necessário acompanhamento do psicólogo. Quando se está a ser acompanhado por um especialista, tudo é cuidadosamente preparado e discutido em função de objetivos específicos a atingir e feito de um modo gradual. O profissional saberá definir a melhor estratégia. Não é como uma experiência do YouTube. Estes exercícios têm de fazer sentido na nossa realidade e, se há coisa que podemos dizer da POC, é: cada um com as suas peculiaridades. Fazer exercícios à maluca pode não ajudar, pode até desajudar. Eu compreendia o racional da intervenção e colaborava no planeamento das tarefas, que iam ao encontro dos diferentes aspectos discutidos nas sessões. Havia compreensão, propósito e caminho.

Sugerir correcção
Comentar