O Referencial de Educação para o Bem-Estar Animal pretende veicular conhecimentos incorretos

Documento contém graves omissões e distorções quanto à produção animal e aos seus impactes no meio ambiente.

Esteve em consulta pública o Referencial de Educação para o Bem-Estar Animal (REBEA), concebido no âmbito da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Trata-se de uma relevante referência para os programas de educação pré-escolar, ensino básico e secundário. Está em jogo o desenvolvimento de competências e aprendizagens de futuros cidadãos, e o propiciar (citando o documento) da “compreensão e a reflexão sobre o respeito pela vida de todos os seres vivos e dos seus habitats, os conceitos de bem-estar e proteção animal”.

No âmbito de uma educação idónea é significativo estimular a autonomia e o sentido crítico; veicular o conhecimento correto e relevante. Porém, uma leitura mais atenta ao REBEA denota graves omissões e distorções acerca da situação atual dos animais usados para consumo, sobre o que é produção animal e seus impactes no meio ambiente.

O documento apropria-se de uma definição de “bem-estar” alicerçada pelo princípio das “Cinco Liberdades”, transmitindo aos leitores a ideia de que os processos atuais de maneio, transporte e abate de animais são benignos, preconizadores da “garantia do respeito pelos animais”. Contudo, a legislação europeia e nacional consagra práticas de maneio, transporte e de abate que são avessas ao bem-estar destes animais. Por exemplo:

O Artigo 4.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Animais nos Locais de Criação, do Conselho da Europa (em vigor em Portugal desde 1982), prevê que os animais permaneçam “habitualmente amarrados ou presos”. Existirá bem-estar quando um animal não tem liberdade de movimentos?

O REBEA afirma que a produção animal possibilita que os animais “expressem o comportamento normal da espécie, promovendo o seu conforto e estados mentais positivos”. Contudo, a própria literatura do setor pecuário reconhece evidentes sinais de stress e angústia quando se separam as crias das progenitoras, ou pelo facto de muitos destes animais estarem confinados. Será que estes animais experienciam estados mentais positivos durante o confinamento, ou quando não interagem de forma idónea entre si ou com a Natureza?

A Diretiva 120/2008 da UE permite que produtores pecuários mutilem /castrem os animais sem anestésicos ou analgésicos. Mas, existe bem-estar quando se experiencia dor física?

Relativamente ao transporte, alguns animais chegam aos matadouros lesionados ou mortos. O transporte de animais vivos por via marítima é reconhecido, já publicamente, que muitos deles experienciam lesões, stress físico, emocional e até a morte. Que tipo de bem-estar experienciam os animais transportados vivos, por exemplo, para Israel?

O REBEA valoriza a produção animal de pequena escala, apontando “que contribui para fixar populações em meios rurais (…) manter certos ecossistemas, contribuindo para a sustentabilidade ambiental”. Porque é que no REBEA se ignora que a produção animal representativa é a de grande escala, cuja atividade está cada vez mais concentrada em grandes empresas, asfixiando os pequenos produtores? Porque é que o REBEA omite os severos impactes ambientais da produção animal, que atinge a cifra de 80% das emissões agrícolas? Porque é que a desflorestação, destruição da biodiversidade, contaminação, degradação dos solos, o esgotar das reservas aquíferas não surgem devidamente associadas como consequências da produção animal? Porque é que a produção animal não é identificada como um dos grandes fatores do aquecimento global antropogénico? Porque é que são ignorados relatórios da ONU, IPCC, OMS, e muita da literatura científica que expõe os impactes da produção animal? Porque é que durante a redação do REBEA os contributos da equipa do Instituto de Ciências Sociais-UL foram “ignorados ou omitidos”, propiciando que os respetivos constituintes renunciassem a autoria do documento?

A Direção-Geral de Alimentação e Veterinária e Ordem dos Médicos Veterinários surgem identificadas como co-autoras desta secção do documento REBEA. Caberá a estas entidades esclarecer a Direção-Geral de Educação, educadores e público em geral, porque é que se pretende continuar a fomentar uma pedagogia de ensino que invisibilize o sofrimento dos animais; e que desassocie a produção animal de severos problemas sócio-ambientais.

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