Descompressão

O que se jogou em Lisboa, no passado domingo, não foi um duelo entre esquerda e direita. Foi um duelo entre os aficcionados do establishment, os indiferentes e rendidos ao malabarismo de Costa, por um lado, e os que despertaram do marasmo em que o incansável triunfalismo do primeiro ministro os embalara, imersos numa sonolência e resignação que pareciam invencíveis.

Independentemente do que Moedas venha a fazer em Lisboa; independentemente dos cálculos e correrias políticas que a sua vitória esteja a suscitar no PSD; independentemente de como no PS se esteja a avaliar qual o melhor posicionamento a adoptar desde já para um dia suceder a Costa, a eleição de Moedas teve um efeito salutar que muito me apraz registar. “Há um sentimento de choque” a “nível nacional”, escreve-se no Observador. E este choque deve ser muito violento, pois obnubila até quem se supunha que ao menos era capaz de juntar duas sílabas. Rui Tavares não tem dúvidas: “Lisboa continua a ser uma cidade de esquerda, mas agora governada pela direita.” Cegueira extraordinária!

O que se jogou em Lisboa, no passado domingo, não foi um duelo entre esquerda e direita. Foi um duelo entre os aficcionados do establishment, as clientelas instaladas, os acomodados, os indiferentes e rendidos ao malabarismo de Costa, por um lado, e os que despertaram do marasmo em que o incansável triunfalismo do primeiro ministro os embalara, imersos numa sonolência e resignação que pareciam invencíveis.

O que aconteceu no passado domingo é que a maior parte do povo lisboeta acordou. Povo de esquerda ou povo de direita? Pouco ou nada interessa para aqui. O que interessa, e muito, é que as pessoas disseram “alto e pára o baile”.

Sim, a governação costista tornou-se num baile quotidianamente animado com a proclamação de boas notícias, de novas benesses, como se Portugal fosse abençoado por uma protecção divina especial. Não havia problemas insolúveis, tudo seria remediado graças à atenção, ao desvelo e ao empenho incansáveis de um Governo que estava em toda a parte ao mesmo tempo, e nada nem ninguém abandonaria ao acaso. E, quando qualquer coisa, inacreditavelmente, corria mal, por sistema a culpa morria  solteira: seria do quer que fosse, chuva a mais ou seca a mais, mas não era seguramente do Governo e, muito menos, do seu timoneiro, António Costa. Maioritariamente, os meios de comunicação social reproduziam e expandiam esta megalomania. Mas pela boca morre o peixe. Costa não morreu, muitíssimo longe disso, mas sai destas eleições com uma asa ferida.

Isto, porém, não é o mais importante do que o que ganhámos com a vitória de Carlos Moedas. O mais importante é que nós, esta enorme quantidade de povo que votou contra o PS e contra o arrogante Fernando Medina, já não temos de pedir licença para existir. É lícito juntar Lisboa às câmaras que o PS perdeu: a vantagem autárquica do PSD em relação ao PS, que era de 63 câmaras, encolheu para 38 câmaras. Não foi, portanto, apenas em Lisboa que se deu o sobressalto. Por esse país fora houve muita gente que entretanto se cansara da retórica triunfalista de António Costa; seis anos de propaganda socialista tinham fabricado uma grande massa silenciosa, que foi às urnas para exprimir o seu desengano e o seu enjoo. António Costa meteu-se até ao pescoço nas autárquicas, prometendo mundos e fundos que não pertenciam ao PS, mas sim ao país. Quando a esmola é muito grande, o pobre desconfia… e Costa exagerou.

Ao longo dos anos, o PS tomou conta da comunicação social e usou-a largamente como uma agência privativa de publicidade. O Estado oferecia-se como o salvador de todas as desgraças ou como a solução para todos os problemas. A sociedade era dispensável; a iniciativa privada era hostilizada. Numa palavra, o país foi capturado pelo PS sob a batuta do seu maestro residente, António Costa. Este foi engordando de arrogância: remodelar Cabrita? Nem pensar. Esta renitência obstinada ofendeu o país: Cabrita tem na sua bagagem dois cadáveres: o do ucraniano morto às mãos do SEF e o do trabalhador de estrada atropelado pela viatura em que o ministro seguia tranquilamente a uma velocidade necessariamente estonteante. (Jorge Coelho também não era pessoalmente responsável pela queda da ponte de Entre-os-Rios mas, no entanto, demitiu-se de ministro das Obras Públicas.) A teimosia autocrática de conservar Cabrita no Governo foi talvez, entre muitos, um dos actos politicamente mais desastrados e ofensivos de António Costa.

A eleição de Carlos Moedas talvez trave a continuação dos disparates em que Medina orgulhosamente se meteu, como a multiplicação das ciclovias numa cidade de colinas em que quase não há ciclistas – por comparação com Londres, por exemplo, onde, curiosamente, quase não existem ciclovias, apenas bicicletas! Note-se que Medina seguiu bem os passos do seu suposto patrono: tal era a altivez que quase se não deu ao trabalho de fazer campanha.

A eleição de Carlos Moedas descomprimiu um ambiente saturado de socialismo, autocracia e pensamento único autorizado. Desde segunda-feira passada que novamente se respira liberdade.

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