O SNS e o punk rock: um grito de revolta

Sendo eu um aluno de Medicina, vejo com grande preocupação o actual rumo do SNS e acredito que, em certos aspectos, serão precisas soluções drásticas. É frequente uma tensão entre os interesses políticos e económicos entranhados na saúde em Portugal e o descontentamento contínuo em relação ao tratamento do SNS.

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Rui Gaudencio

É claro para todos nós o subfinanciamento contínuo a que o SNS tem vindo a ser sujeito há vários anos, que resulta numa persistente insatisfação dos profissionais que o integram e de quem dele usufruiu, que, cada vez mais, encontra dificuldade em aceder a cuidados de saúde, aumentando o fosso social do país. Porém, este problema não é exclusivo de Portugal, pois o SNS inglês (National Health Service, ou NHS) tem sofrido das mesmas síndromes.

Por isso, os IDLES, uma banda britânica, apresentaram uma interpretação punk da sua inquietação em relação ao desmantelamento do NHS, que, de muitas formas, pode ser comparado ao do SNS. Joe Talbot, vocalista da banda, e os familiares usufruíram vastamente dos cuidados de saúde prestados pelo NHS, como relatado em variadas entrevistas. Joe nasceu no NHS e foi tratado ao pé equino (ou pé boto), tratamento que exigiu 11 cirurgias desde nascença, todas livres de custos. O NHS também prestou, gratuitamente, tratamentos oncológicos ao seu padrasto e cuidados contínuos (hemodiálise) à sua mãe, durante vários anos.

Independentemente das inúmeras mágoas pelas quais tem passado, Joe Talbot relembra a enorme compaixão entre os profissionais de saúde e os seus familiares. Acima da ciência e do dinheiro, Joe acredita que o verdadeiro motor dos nossos serviços de saúde são a dedicação, a entrega e a dedicação ao próximo, numa luta constante pela igualdade humana.

No álbum de estreia, Brutalism (2017), os IDLES dedicaram a música Divide & Conquer ao NHS. Talbot considera que esta canção é uma carta de amor ao NHS (“a love letter to the NHS”). A atenção dos IDLES ao NHS foi comprovada recentemente, pela oferta de mais de 2000 bilhetes aos profissionais de saúde para um espectáculo em Bristol, como agradecimento pelos esforços durante a crise pandémica. Pessoalmente, Divide and Conquer é uma das minhas músicas favoritas do álbum porque contrasta com as demais, que costumam ter letras mais corrosivas e densas. Outro factor de diferenciação é o ritmo inicial desacelerado. A música é, em grande parte, sustentada e guiada por uma guitarra que começa pesada e tensa, mas que se conjuga com uma percussão encorpada, criando, imediatamente, uma imagem de confronto.

O refrão é simples e directo: “Divide (x3) and Conquer” (“dividir e conquistar”). As letras são uma referência ao modus operandi dos governos de direita ingleses que fomentam a divisão social. Neste caso, a música tenta ser uma resposta directa ao Health and Social Care Act de 2012, que retirou a responsabilidade da saúde dos cidadãos ingleses do Secretariado da Saúde. Contudo, a divisão também se vê a um nível técnico, sendo que cada vez mais profissionais optam por não manter uma ligação exclusiva ao NHS e procuram melhores condições de trabalho, de progressão de carreira e de reconhecimento no privado. De forma que, actualmente, grande parte do sustento do NHS (e do SNS) advém do igualitarismo ético de certos profissionais que acreditam com fervor que a saúde humana é, inequivocamente, um direito de todos, o que foi mais do que comprovado durante esta pandemia.

À medida que a música evolui, a guitarra acompanha o aumento de agressividade no timbre de voz de Talbot, transmitindo, de uma forma eloquente, a carga emocional do tema, cada vez mais electrificante. No verso, repete-se três vezes que “um ente querido nosso pereceu nas mãos da direita burguesa” (“A loved one perished at the hand of the baron-hearted right” ). Como é costume nas letras de Joe Talbot, o auto-intitulado socialista, recorre activamente a vários conceitos marxistas, sendo a luta entre classes sociais um deles. Esta é a mensagem principal da música que, apesar da sua simplicidade, é uma verdade imponente que aponta o dedo às classes políticas que ele culpa pela morte da mãe. O jogo de palavras em inglês também é de realçar: apesar de a letra dizer “baron-hearted right” (“a direita do coração dos barões”, em tradução livre), a fonética assemelha-se a de “barren-hearted right” (“a direita de coração estéril”, também em tradução livre), que realça a insensibilidade dos Tories perante as causas sociais do seu país.

Pouco antes da parte final, que antevê um crescendo exuberante, junta-se outra guitarra, que servirá de sustento à insurreição catártica dos grunhidos viscerais de Talbot. Trata-se, assim, de um verdadeiro grito de revolta, relembrando um Kurt Cobain em esteróides. Na parte final, ambas as guitarras atingem um timbre quase psicadélico, alimentando a raiva que já vinha a ser arquitectada. O próprio videoclipe tem uma dramatização violenta e pungente que é apresentada pelo confronto físico e demonstra a hostilidade e opressão das políticas conservadoras inglesas para com a população.

Sendo eu um aluno de Medicina, vejo com grande preocupação o actual rumo do SNS e acredito que, em certos aspectos, serão precisas soluções drásticas. É frequente uma tensão entre os interesses políticos e económicos entranhados na saúde em Portugal e o descontentamento contínuo em relação ao tratamento do SNS. É, sem dúvida, necessário adquirir uma mentalidade arrojada para proteger um direito de todos os portugueses. É urgente uma solução inovadora, transformativa e progressista. Resumindo, é urgente uma solução punk. Agora, mais do que nunca, é importante que qualquer pessoa com carinho e estima pelo SNS não fique idle, isto é, indiferente, ao que se passa.

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