Ministério Público admite que dois dos crimes da Operação Marquês já prescreveram. E podem prescrever mais

Adesão de Carlos Santos Silva a amnistia fiscal RERT II data de 2010, pelo que nem empresário, nem José Sócrates podem ser julgados por falsificação de documento. O mesmo sucedeu com um dos crimes de fraude fiscal imputados a Zeinal Bava.

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LUSA/RODRIGO ANTUNES

O Ministério Público admite que um dos crimes de falsificação de documento que assacou ao ex-primeiro-ministro José Sócrates e ao seu amigo Carlos Santos Silva, e que diz respeito à adesão do empresário ao regime excepcional de regularização tributária RERT II, prescreveu este Verão. Destino idêntico poderão vir a ter outros crimes do mesmo género alegadamente cometidos pelos protagonistas da Operação Marquês.

No recurso que entregaram nesta terça-feira em tribunal a contestar a decisão do juiz de instrução Ivo Rosa de não levar a julgamento parte substancial dos arguidos do processo e de descartar também a maior parte dos crimes que constavam da acusação, como a corrupção, os procuradores Rosário Teixeira e Victor Pinto e dois outros colegas discordam de muitas das prescrições decretadas pelo magistrado. Mas reconhecem que há pelo menos um delito pelo qual não é possível responsabilizar os dois arguidos, por ter passado demasiado tempo.

A adesão ao RERT II foi entregue por Santos Silva a 15 de Dezembro de 2010, nas instalações do BES em Lisboa, para encaminhamento para o Banco de Portugal, para beneficiar da amnistia fiscal decretada pelo Governo de José Sócrates. Ao todo, o empresário transferiu da Suíça para Portugal 23 milhões de euros, que sempre garantiu que eram seus e não do antigo líder socialista. 

O crime de falsificação radica, segundo o Ministério Público, no facto de os dois amigos terem feito constar na declaração de adesão a este mecanismo que os fundos pertenciam apenas ao empresário, “quando sabiam que pertenciam essencialmente ao arguido José Sócrates”.

Sucede que, não ultrapassando a moldura penal do crime em causa os três anos e meio de cadeia, o seu prazo de prescrição também não é dos mais elevados. Os procuradores fizeram as contas: “Estando em causa um crime punido com uma pena até três anos de prisão é aplicável um prazo de prescrição do procedimento de cinco anos, que foi interrompido com a constituição como arguido e suspenso, pelo período de três anos, com a dedução da acusação. Pelo exposto, tendo já decorrido mais de dez anos e seis meses sobre a consumação do crime, entendemos que o procedimento criminal relativamente ao mesmo se encontra extinto por prescrição, desde 15 de Junho de 2021.”

Ou seja, este delito prescreveu já depois de o Ministério Público ter deduzido acusação e de Ivo Rosa ter feito o despacho de pronúncia. E o PÚBLICO sabe que o mesmo poderá suceder com vários outros crimes do mesmo tipo de constam da Operação Marquês, que teve origem numa investigação iniciada em 2013 e fez as primeiras detenções em Novembro de 2014.

Por outro lado, o Ministério Público admite que Ivo Rosa teve efectivamente razão ao declarar prescrito um dos dois crimes de fraude fiscal imputados ao antigo dirigente da Portugal Telecom Zeinal Bava - por muito que o juiz de instrução tenha ilibado este arguido não apenas do delito em causa mas dos restantes que lhe eram também assacados pela acusação, incluindo peculato e corrupção. É um momento quase único da acusação, que faz inúmeras e violentas críticas a toda a actuação do magistrado. 

A fraude fiscal que o Departamento Central de Investigação e Acção Penal considera que Zeinal Bava cometeu diz respeito aos mais de 25 milhões de euros que lhe terão sido pagos por Ricardo Salgado em troca do favorecimento dos interesses do Grupo Espírito Santo, nomeadamente barrando a entrada da Sonae (proprietária do PÚBLICO) na PT, mas também no que dizia respeito aos futuros negócios do grupo de telecomunicações no Brasil. Esses pagamentos não foram declarados ao fisco e é discutível que o tivessem de ser, tratando-se de subornos. Nem teria tão pouco de o fazer se se tratasse de empréstimos, como alega o antigo presidente executivo da PT, para comprar acções da própria empresa. 6,7 dos mais de 25 milhões que recebeu através do chamado saco azul do GES, a Espírito Santo Enterprises, teriam de ter sido declarados no IRS de 2007, ano demasiado longínquo, do ponto de vista da prescrição, para este gestor poder algum dia vir a ser responsabilizado criminalmente pelo sucedido, admite agora o Ministério Público, recuando assim em relação ao que tinha defendido na acusação. 

Críticas à decisão de Ivo Rosa

Como já aconteceu noutros momentos deste processo, os procuradores não hesitam em desqualificar o trabalho desenvolvido por Ivo Rosa na destruição de parte significativa da acusação produzida pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal. “A decisão instrutória que é objecto do presente recurso revela menosprezo e incompreensão pelo trabalho de recolha de prova feito em sede de inquérito”, escrevem no recurso os magistrados. “Recorre a interpretações erradas e viciadas, isto é, faz uma leitura tendenciosa e adulterada dos factos narrados na acusação.” Principal prova disso, segundo os magistrados, é Ivo Rosa ter, nas conclusões a que chegou, “omitido os factos relacionados com os movimentos financeiros, que ocupam uma parte significativa da acusação, apesar de os admitir como indiciados”.

E não poupam nas críticas, ao acusarem o juiz de instrução de ter “pervertido o sentido narrativo da acusação, imputando-lhe significâncias erradas e alterando a cronologia dos factos e o sentido da acção dos arguidos, mas também adulterando o suporte legal e interpretativo das soluções jurídicas encontradas pelo Ministério Público. Objectivo? Segundo os dois magistrados, para poder afirmar que a visão que o Ministério Público tem deste processo está viciada ou viola princípios constitucionais. Victor Pinto e Rosário Teixeira lamentam “a adesão acrítica” de Ivo Rosa às explicações dadas pelos arguidos para negarem a prática de actos criminosos, “bem como a sua adesão integral ao teor dos depoimentos dos correligionários políticos de José Sócrates” - como os seus ex-ministros e ex-secretários de Estado Teixeira dos Santos, Mário Lino, Paulo Campos e Carlos Costa Pina -, por muito que as suas declarações tenham sido “totalmente contrariadas por documentos e depoimentos prestados por outras testemunhas” da Operação Marquês no capítulo da rede de alta velocidade e no do controlo da Portugal Telecom. 

Lamentam também que o magistrado tenha, no que a algumas destas questões diz respeito, descartado a credibilidade de testemunhas como José Maria Ricciardi, do grupo Espírito Santo, quando este revelou a existência de “um círculo de pessoas íntimas” que “passavam os dias em reuniões” uns com os outros: Mário Lino, Paulo Campos, as pessoas do grupo Ongoing, e o banqueiro Ricardo Salgado.

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