Carta Aberta a um primeiro-ministro com dor de dentes

Mais de 60% do território nacional continua sem dispor de um médico dentista na rede pública de cuidados de saúde primários e o tempo de espera por uma consulta dentária chega a ser de largos meses.

Excelência,

Conhecidos que são os resultados das eleições autárquicas do fim de semana, permita-me que retorne ao último dia de campanha eleitoral para lhe manifestar a minha mais viva solidariedade pessoal e institucional, expressando o desejo de que tenham já sido completamente debeladas as causas da dor de dentes que, segundo a comunicação social, o impediu de participar em algumas das ações políticas previstas para a passada sexta-feira. Enquanto bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, estou bem consciente não só do profundo incómodo que pode advir de uma dor de dentes, mas também de que os quadros clínicos relacionados com a saúde oral constituem uma das principais causas de absentismo escolar e profissional e, consequentemente, de perda de produtividade.

De acordo com os números de que dispomos, a cárie dentária é a doença mais prevalente em todo o mundo, à qual deve somar-se a doença periodontal, a sétima mais comum a nível global. A OMS estima, aliás, que o impacto económico global gerado por estas patologias ascenda aos 750 mil milhões de dólares anuais.

Apesar da evidência que estes factos expressam, recordo a V. Exa. que cerca de3 0% dos portugueses apenas recorre a um médico dentista em caso de dor ou de urgência, o que, sem dúvida, pode e deve ser relacionado com o facto de uma parte muito substancial da população não ter ainda condições de aceder a cuidados especializados de saúde oral, pois permanece por cumprir a promessa que fez aos portugueses de, em 2020, ter um médico dentista em cada centro de saúde. Mais de 60% do território nacional continua, aliás, sem dispor de um médico dentista na rede pública de cuidados de saúde primários e o tempo de espera por uma consulta dentária chega a ser de largos meses. 

Imagine, pois, senhor primeiro-ministro, o que seria da sua dor de dentes, se não tivesse a possibilidade de recorrer a um médico dentista do sector privado. 

Um episódio de odontalgia é quase sempre um momento doloroso e angustiante. Se outra vantagem não teve, a inopinada dor de dentes que o acometeu deve servir, ao menos, para tornar ainda mais óbvia a necessidade de garantir o acesso de todos os portugueses a cuidados de medicina dentária, concretizando, de uma vez por todas, o programa de saúde oral. Urge assegurar, nomeadamente, uma resposta de urgência de atendimento dentário em parceria com a vasta rede de médicos dentistas existente no país, acautelando assim, e de forma plena, a satisfação do elementar direito de todos os cidadãos a um sistema de saúde verdadeiramente integral e universal.

Sem pretender importuná-lo demasiado neste momento tão delicado, gostaria, ainda assim, de recordar a V. Exa. que — conforme poderá ter constatado durante a consulta a que agora recorreu — a recente legislação que obriga a que todos os atos radiológicos realizados por médicos dentistas sejam precedidos de uma declaração de consentimento informado por parte dos pacientes constitui mais um empecilho burocrático que em nada contribui para a prestação célere e racional de cuidados de saúde.

Certo, pois, de que, tendo sido tornada pública, a maleita de V. Exa não terá deixado de constituir uma oportunidade para refletir com maior proximidade e conhecimento de causa sobre um conjunto de questões que quotidianamente nos inquietam, não gostaria de terminar esta missiva sem solicitar o seu comprometimento pessoal na resolução dos problemas que afetam o exercício profissional dos médicos dentistas e o seu acesso à profissão.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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