Maria foi violada à entrada de casa: “Foi quase como se tivesse morrido”

Estudo recente revela que 70% das vítimas ficam com imobilidade tónica. Especialistas defendem que violação deve passar a crime público. Segundo a PJ, em Portugal houve menos 25% de violações contra mulheres, o que se pode explicar devido à pandemia.

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Especialistas defendem que violação deve passar a crime público Rui Oliveira

“Foram cinco minutos em que foi quase como se tivesse morrido e entretanto voltasse. Só senti a seguir. Na hora não senti nada.” As palavras são de Maria Luísa, 27 anos, licenciada, que em Junho foi violada no Porto, à porta do prédio de sua casa, depois de um jantar com uma amiga. Voltou à vida quando o violador abandonou a cena do crime. Terá sofrido de imobilidade tónica significativa, uma espécie de paralisia temporária devido ao medo excessivo.

Na cabeça de Maria houve uma ausência de tempo. O homem que a violou não proferiu uma palavra. Ela diz que lhe reconhece o rosto se o vir na rua. Lembra-se de que tinha a boca tapada e que lhe era difícil respirar. “Não consigo explicar porque não reagi. Não sou muito pesada, nem aparento ser muito forte, mas acho que seria capaz de ter fugido. Incomoda-me pensar que não pensei, que não reagi. Acho que não sentia nada”, conta.

No dia da violação tinha ido jantar com uma amiga. Regressou sozinha a casa, no seu carro. Uma casa sem garagem no centro do Porto que a leva a estacionar onde há lugar disponível. Estacionou e viu alguém encostado ao muro. “Quando saí do carro é que me apercebi de que a pessoa se pôs atrás de mim. Fiquei um bocadinho nervosa. Comecei a acelerar o passo, a pessoa acelerou o passo também. Comecei a correr e a tirar a chave do apartamento da mochila”, contou.

Maria ainda conseguiu abrir a porta do prédio, mas não teve força suficiente para a fechar. De acordo com os telefonemas à polícia, a violação durou cinco minutos. Um recente estudo científico do Instituto Karolinska (Suécia), realizado a 298 mulheres violadas, revela que 70% dessas vítimas relataram que sofreram de imobilidade tónica significativa.

A directora técnica do Centro de Atendimento para Vítimas de Violência Sexual no Porto, Ilda Afonso, conta que há mulheres que no momento do crime nem sequer conseguem gritar. “Tentam pedir ajuda e não sai qualquer som. Há mulheres que paralisam de medo e outras que até poderiam resistir, mas que percebem que se resistirem podem ser mortas e escolhem não o fazer”, descreve.

A violação e a importunação sexual são os crimes mais denunciados naquele centro, e as mulheres que mais procuram ajuda têm entre 25 e 40 anos. As denúncias de violência sexual e os pedidos de ajuda mantiveram-se durante a pandemia, registando-se um aumento dos pedidos de ajuda de vítimas de violência sexual na intimidade.

“As vítimas chegam com traumas muito severos, porque são vítimas de violência sexual muito grave. São vítimas em que toda a sua vida fica comprometida (...). São mulheres com depressões, com stress pós-traumático, com uma variada sintomatologia, agravada agora com o período da covid-19 devido ao isolamento. A violência sexual traz consequências para a vida toda. Só com apoio especializado e continuado é que conseguem melhor a sua qualidade de vida.”

A presidente da Liga Feminista do Porto, Diana Pinto, conta que este ano chegaram à associação “três denúncias de violação” — uma em Abril, na estação de metro da Trindade —, e “largas dezenas de denúncias de importunação sexual” (masturbação em público, mostra de genitais, toques indesejados e violência verbal). Os locais com maior incidência são Boavista, Bonfim e Campanhã. “Mais de metade das denúncias de abuso sexual e importunação sexual ocorreu no centro e Baixa do Porto.”

Diana Pinto e Ilda Afonso consideram que o crime de violação deve passar a crime público. “Tinha esperanças ainda para esta legislatura, mas o mais tardar na próxima [legislatura] espero que isto não seja mais uma questão. Todos os dias em que esperamos há mulheres em situações de perigo e inacessibilidade à justiça, que é um direito que lhes assiste”, declarou Diana Pinto. Para Ilda Afonso, é urgente que a denúncia da violação possa ser feita até três anos após o crime. “As mulheres precisam de se pôr em segurança e o espaço de três anos é muito importante. Temos de conseguir, em Portugal, ter um processo mais amigo, que dê apoio à vítima”, diz.

Helena (nome fictício), 22 anos, estudante, foi perseguida, em Maio, por volta da meia-noite nas Fontainhas, quando esperava um Uber com uma amiga. Depois de fugirem, correndo pela Ponte D. Luís, as duas amigas conseguiram entrar num táxi.

O choro no táxi, por se sentir a salvo, nunca o esquecerá. Não esquecerá também o dia em que adormeceu no sofá da casa de uns amigos, acordando com os calções abertos. Fora vítima de abuso sexual.

“Viver depois da violação é lutar quase constantemente para não sentir que a nossa vida é aquilo [violação]. Apesar de sabermos que as pessoas não pensam isso, é inevitável pensarmos isso sobre nós próprios”, resume Maria, que no dia da violação foi levada para o Hospital de São João e fez denúncia à Judiciária.

Hoje, Maria tem ajuda psicológica e espera um telefonema da polícia com novidades. “Sou uma privilegiada, porque felizmente tive meios para conseguir sair daquela casa, porque há muita gente que vive o que eu vivi e que tem de continuar a passar lá todos os dias, porque não tem forma de sair dali. Sou uma privilegiada, porque tenho um emprego que me permite viver sozinha e me permite sair daquele sítio. Mas viver depois é muito difícil”, desabafou.

Maria Luísa está focada em se reconstruir: “Este ano é quase um ano sabático. Preciso de parar e talvez voltar, ou quem sabe, pela primeira vez, tentar conhecer-me e tentar apaixonar-me, porque não é fácil continuarmos a viver se não estivermos apaixonados por nós próprios”, conclui.

Menos violações em 2020, segundo a PJ

Segundo a PJ, em Portugal houve menos 25% de violações contra mulheres adultas em 2020 (315), em relação a 2019 (421), e a quebra poderá explicar-se com o “assalto sexual” na rua que abrandou devido à pandemia.

Nos últimos sete anos e meio, até 31 de Agosto, Portugal registou um total de 2008 casos de violações de mulheres adultas, mostram números do Relatório Anual de Segurança Interna 2020 (RASI 2020) e da PJ, a que a Lusa teve acesso. 

A quebra de menos 106 casos de crime de violação de 2019 para 2020 pode relacionar-se com a pandemia e o confinamento, porque os crimes de violação acontecem a dois níveis, explicou à Lusa fonte oficial da Polícia Judiciária (PJ). 

Um primeiro nível em que há uma relação prévia de conhecimento entre a vítima e o agressor, ou seja, uma proximidade prévia que pode ser numa relação familiar, laboral, relacional, entre outras. 

E um segundo nível que acontece no chamado “assalto sexual”, ou seja, a “vítima e o agressor não se conhecem de lado nenhum” e o crime pode acontecer numa paragem de autocarro, no metro, durante uma corrida na mata.

Em 2021, com o desconfinamento e o início do regresso à normalidade da vida antes da covid-19, é “normal que os riscos de violação aumentem no chamado ‘assalto sexual’”, alertou a PJ.

Nos últimos 20 meses – entre 1 de Janeiro de 2020 e 31 de Agosto de 2021 – houve um total de 469 casos de violação de mulheres adultas. Neste período, o distrito de Lisboa é o que aparece em primeiro lugar, com 146 casos de crimes de violação contra mulheres adultas. Em segundo lugar está o distrito do Porto, com 58 casos de violação, e em terceiro lugar o distrito de Setúbal, com 55 casos.

Olhando só para este ano, entre 1 de Janeiro e 31 de Agosto, houve registo de 154 casos.

Para a investigação policial, a PJ sugere que, quanto mais proximamente do facto for feita a denúncia, “melhores meios e mais capacidades há para recolha de dados objectivos”. “Se a denúncia for feita próxima do evento, se calhar há vestígios ainda susceptíveis de serem recolhidos. Gostaríamos que o acto de denúncia ou de sinalização fosse o mais próximo possível do crime”, sustenta. 

A denúncia, por vezes, até pode ser feita onde a vítima recebeu assistência, seja no hospital ou no Instituto de Medicina Legal, onde a vítima foi assistida. 

“Quanto mais vestígios objectivos, quanto mais marcas biológicas do agressor se conseguirem reunir, melhor. E esses vestígios biológicos conseguem-se recolher mais facilmente se for no conjunto de horas seguintes ao evento criminoso”, acrescenta.

A PJ aconselha as vítimas de violação a não tomarem banho. “Se pessoa já tiver tomado banho é normal, porque a pessoa sente-se conspurcada e tem pressa de se libertar desse sentimento de sujidade, mas para o interesse da investigação, a possibilidade de recolha de vestígios deve ser feita sem que a pessoa se lave, sem que a pessoa mude a roupa interior, se afaste daquilo que sofreu.”

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