Lisboa: os novos “velhos tempos”

A capital foi governada em função da atracção de investimento imobiliário, do turismo de massas, dos grandes eventos internacionais, dos hubs de empreendedorismo e dos nómadas digitais. Suspeito que o projecto de Fernando Medina – a cidade encarada enquanto produto – será aprofundado por Carlos Moedas, mas agora de forma menos dissimulada.

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Rui Gaudêncio

Fernando Medina caiu em Lisboa, algo que já era possível adivinhar, não através das sondagens, mas do enorme descontentamento e desgaste sentido nas ruas. O antigo presidente da câmara não governou para os seus eleitores, antes pelo contrário: estes foram sendo expulsos ou desistiram de viver na cidade ao longo do seu mandato, como comprovam os resultados recentes do Censos 2021.

Na última década a cidade perdeu 7849 habitantes. Metade das suas freguesias registaram uma evolução demográfica negativa, atingindo no centro histórico quedas superiores a 20%. Os preços da habitação subiram exponencialmente coadjuvados pelos vistos gold, o estatuto de residente não habitual, a alteração à lei dos arrendamentos de Assunção Cristas e a desregulação reinante no mercado imobiliário – agravada pelas novas e intocáveis plataformas de alojamento local.

A capital foi governada em função da atracção de investimento imobiliário, do turismo de massas, dos grandes eventos internacionais, dos hubs de empreendedorismo e dos nómadas digitais – em suma, do incremento da competitividade em prol da globalização. Fernando Medina seguiu à risca a cartilha de política económica neoliberal – o mercado comandou as políticas urbanas e não o inverso. Se, ao menos, o retorno do investimento obtido na capital tivesse sido redistribuído no sentido da redução das desigualdades e problemas urbanos a nível metropolitano (do qual era presidente da associação de municípios), poderíamos vislumbrar alguma ponta de socialismo. Mas não, Medina fez tudo para alimentar a bola de neve – canalizou milhões de euros para os grandes projectos urbanos imaginados por Manuel Salgado e alienou grande parte do património municipal para privados.

A pandemia de covid-19 expôs as enormes vulnerabilidades deste modelo a nível social, económico e sanitário. Com menos moradores e uma economia pouco diversificada  (sobre)dependente do sector turístico e imobiliário –, os apoios para manter a capacidade produtiva instalada (ao nível do comércio, da restauração, do turismo) e suprir as enormes carências sociais numa cidade que se vive em esforço tiveram que ser hercúleos. Silêncio aterrador nas ruas vazias, surtos de covid-19 nas habitações sobrelotadas onde vivem os imigrantes, os estudantes, os jovens adultos, etc.

Suspeito que o projecto de Fernando Medina  a cidade encarada enquanto produto  será aprofundado por Carlos Moedas, mas agora de forma menos dissimulada. A fábrica de unicórnios cujo objectivo é “trazer conhecimento e experiência de topo mundial para o empreendedorismo local”, a criação do Balcão Único para os empreendedores e investidores em Lisboa, o sonho de tornar Lisboa a capital Global da Economia azul são sinais de que o caminho iniciado não se vai inverter. A tentativa de resolução dos problemas de habitação via benesses fiscais ao nível dos créditos bancários para os jovens ou do parque público camarário – que aliás não difere grandemente da proposta de outros partidos – revela o desinteresse no âmbito da regulação do mercado imobiliário e será certamente uma resposta insuficiente face às graves carências verificadas.

Lisboa continuará a ser regida pelos ratings globais da competitividade (e não pelo esforço de reduzir as desigualdades), pelos unicórnios inovadores, pelos grandes eventos e pela implacável inflação dos preços do imobiliário. Gostava de estar enganado, mas pressinto que a capital se tornará um paraíso para as elites económicas nacionais e internacionais e um inferno proibitivo para os restantes cidadãos. Bem-vindos aos “novos tempos”, do quais de novo se antevê muito pouco.

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