O legado da luta anti-racista

No 10.º aniversário do P3, estendemos o Megafone a dez vozes para falarem de dez causas. O que mudou numa década? Como será a próxima? Andreia Galvão, activista, olha para o que foi feito na luta anti-racista na última década.

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Paulo Pimenta

A luta anti-racista tem um longo passado e uma longa tradição de resistência à opressão inerente aos sistemas sociais que nos envolvem. Os movimentos espontâneos como o Black Lives Matter, que surgiram como resposta à violência policial brutal que assassina e sufoca corpos e reivindicações negras, não nasceram no vácuo. Surgem de um sistema político e económico que precisou de se expandir para a periferia para a sua manutenção, iniciando processos que nós hoje em Portugal relembramos como os “Descobrimentos”. Além do paradoxo da expressão com a realidade de povos que consideravam que povos, territórios e culturas só passavam a existir a partir do momento em que estes a reconheciam, olhamos com novos olhos para os processos de expansão imperialista que foram levados a cabo.

O messianismo branco que procurava converter as culturas “bárbaras e primitivas” em culturas “ocidentalizadas e civilizadas” limpava a consciência que muitas das pessoas desses territórios tinham sobre si próprias, de quem eram e porque resistiam. A Igreja Católica teve um papel preponderante na colonização mental feita de forma intencional nestes territórios, para manter o sistema vigente.

Vários líderes africanos encontraram um sentimento colectivo de revolta, de unidade e de luta que foi crucial para a transformação cultural e social necessária para uma mudança política. Frantz Fanon, um intelectual negro francês, dizia que para o sujeito oprimido se libertar era preciso que este reconhecesse que era digno da sua humanidade. As lutas de libertação significavam esse ponto de encontro, sendo que o revolucionário Amílcar Cabral reconhecia que estas eram actos geradores de cultura. Talvez seja por isto que milhões de pessoas saíram há um ano às ruas com uma única reivindicação: as vidas negras importam.

Devolver a humanidade às pessoas que se viram sistemicamente privadas dela é a luta que activistas de grupos como os Black Panthers também tentaram travar num contexto completamente diferente. Encapsulavam a necessidade de superar o país cuja história assenta na segregação racial, na separação de classes, sendo uma luz de esperança para quem achava que a política não as poderia representar. Foram uma contracultura tão politicamente relevante que a cultura dominante não via outra forma de dizimar que não fosse o recurso à violência e ao terror. Representavam a mesma esperança que Martin Luther King, Malcolm X simbolizavam: a ideia de que era possível, urgente e necessário superar essa sociedade.

Amílcar Cabral dizia que o imperialismo europeu, no processo histórico, era inevitável, tal como era inevitável a luta de libertação africana. Se esta visão partilha o determinismo de um sujeito oprimido que está em movimento e quase profere a citação atribuída a Jesus Cristo na Bíblia, a fé de que “os últimos serão os primeiros”.

Nos últimos dez anos, Portugal tem-se demarcado muito relativamente à questão étnico-racial. Conto-o a partir da minha perspectiva: quando dizia aos meus colegas que o racismo existia, eles rapidamente desviavam o olhar e refutavam, “isso era nos Estados Unidos, cá não”. Havia uma certa sensação de desprestígio em reconhecer os problemas sociais que nos afligiam, a normalização do abuso e preconceito racial era tão grande que ninguém via problemas em chamar a pessoas escravizadas “mercadoria”. Foi por isso que chorei pela primeira vez na escola. A nossa professora contava a história dos “Descobrimentos”, e de como tínhamos sido grandes e gloriosos, e eu chorava porque sentia que a mesma insensibilidade que se atirava perante a escravatura era a violência que a sociedade procurava empunhar contra mim, que não passava de uma criança.

O movimento Black Lives Matter surgiu em 2014 e a alterar o discurso racial que existia em todo o mundo, tornando evidente a violência que afligia os corpos de outros que eram jovens crianças, tal como eu. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, as nossas reivindicações iam ficando mais difíceis de ignorar. Saímos às ruas quando George Floyd morreu para dizer que não toleraríamos mais que as coisas assim fossem acompanhadas por milhões de outras pessoas.

A sensação de mudança tem encontrado uma ausência de políticas estruturais que nos permitam ultrapassar este sistema e estas políticas que nos matam, a necropolítica com a qual não seremos mais complacentes.

Ser jovem em 2021 é reconhecer que há este legado histórico que antecede tudo o que fazemos, mas perceber a necessidade de analisar a sociedade na qual nos inserimos. É saber as lutas que não podemos abster de travar e é rejeitar a cultura da “imparcialidade” que significa, para os oprimidos, (sempre) a complacência com o opressor. É reconhecer a magnitude dos desafios, dos sistemas, das ideias que queremos superar. Mas não sucumbir e encontrar formas colectivas de a superar. Reconhecermos a interdependência que temos uma das outras e a importância de não largar a mão de ninguém: essa é a nossa força.

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