Recuperação e Resiliência – Ventos de reforma para o Sistema de Saúde Português?

O Sistema de Saúde português carece de reforma e este deveria bem ser o kairós e o chronos para a levar por diante, inspirados nas lições da pandemia, na onda de recuperação resiliente para o País e ajudados pelos fundos a ela mesma atribuídos.

O País tem assistido a uma mobilização sem precedentes, com apresentação de ideias e projectos no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). De facto, uma boa negociação com a Comissão Europeia terá permitido um relevante envelope financeiro destinado à recuperação pós-pandemia em Portugal.

Evitando a discussão, sempre politizada, sobre a orientação desse envelope para o investimento público, em detrimento das empresas, é indiscutível ser esta uma oportunidade única para a desejável mudança do país, nomeadamente nas suas dimensões climática, ambiental e digital, num contexto de retoma do crescimento sustentável e inclusivo, e numa atitude profundamente resiliente. Oportunidade a não falhar.

Normalmente, o dinheiro resulta das boas ideias e não será o dinheiro que conduz às ideias geradoras de bons projetos. Receio bem que na azáfama da corrida às ideias, que condiciona já hoje associações inimagináveis em torno de projetos, muitos de maturidade discutível e alguns de utilidade improvável, estejamos a assistir à procura de ideias para poder utilizar o dinheiro que virá a estar disponível. Seria ideal que os setores em maior défice, ou necessidade, estivessem preparados para submeter candidaturas credíveis, particularmente aqueles que a pandemia revelou serem os mais carentes de reforma. Tomo como exemplo a Saúde.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) saiu-se bem desta pandemia e a excelente campanha de vacinação foi disso inegável e honroso exemplo para o SNS e para o País. A saúde dos portugueses é que nem tanto. Agravaram-se as dificuldades de acesso, avolumam-se os que ficaram para trás, sentem-se as carências de financiamento e acentuam-se os défices da gestão. Aos problemas pré-existentes, juntou-se o desgaste natural com a pandemia: são as questões do pessoal, a falta de infraestruturas, a desmotivação de carreiras e a eterna asfixia financeira, só pontual e transitoriamente afrouxada pela emergência pandémica.

O SNS, talvez a maior conquista da nossa democracia, tem 40 anos de história gloriosa, mas mostra hoje o desgaste de qualquer organização que não conseguiu acompanhar suficientemente as profundas mudanças operadas tanto na saúde como na sociedade. Mantém a mesma missão, talvez ainda mais atual nesta fase pós-pandémica, mas precisa de uma profunda reforma estrutural que lhe permita resiliência e prontidão, que o oriente para o valor criado para os cidadãos, que o transforme digitalmente, sem que perca a proximidade humana. Numa palavra: que o mantenha resiliente, com acesso e qualidade, no permitir de escolhas livres e informadas, e que nos seja, a todos, sustentável economicamente.

Até aqui, faltou financiamento. Agora, haverá dinheiro, o que permitirá, como alguém já disse, “tirar da gaveta projetos antigos”. Mas será que o dinheiro por si só nos trará um melhor Sistema de Saúde? Sinceramente, acho que não. Precisamos de uma ideia reformista para a Saúde, fiel aos princípios de cobertura global e de equidade social que sempre inspiraram o SNS, mas livre dos vieses políticos que a têm tolhido, e guiada por uma visão moderna – adaptada às novas tecnologias e ajustada às novas necessidades dos cidadãos. O Sistema de Saúde português carece de reforma e este deveria bem ser o kairós e o chronos para a levar por diante, inspirados nas lições da pandemia, na onda de recuperação resiliente para o País e ajudados pelos fundos a ela mesma atribuídos.

Por isso, precisamos, mais do que nunca, de uma visão reformista para a Saúde. Só assim daremos bom uso ao dinheiro. O Sistema de Saúde Português poderia ser o exemplo de que são as boas ideias que permitem o bom uso do dinheiro, e não o dinheiro que inspira as ideias, ou motiva primeiramente os projetos.

Um velho provérbio náutico diz que “por melhor que seja a nau, nunca soprarão bons ventos a quem não conheça o seu rumo”. Na Saúde, é agora tempo de rumarmos ao futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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