A década dos direitos dos animais

No 10.º aniversário do P3, estendemos o Megafone a dez vozes para falarem de dez causas. O que mudou numa década? Como será a próxima? A investigadora em Direito dos Animais e antiga Provedora dos Animais de Lisboa reflecte sobre a evolução da protecção jurídica dos animais em Portugal.

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Adriano Miranda

Quando, em 2003, Fernando Araújo escreveu A Hora dos Direitos dos Animais, mal poderia adivinhar que a velhinha Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, conhecida como “lei geral de protecção animal” (tão geral, tão geral que, em concreto, fez muito pouco pelos animais), e o já entradote Decreto-Lei nº 276/2001, de 17 de Setembro (que estabelece, de forma muito vaga e de difícil aplicação, o regime contra-ordenacional de protecção dos animais de companhia), iriam ser ultrapassados numa escalada que começou dez anos depois — e que se concretizou no início de uma revolução política, social e jurídica. 

Na verdade, depois do mencionado Decreto-Lei de 2001, a protecção jurídica dos animais em Portugal, que já não era entusiasmante, entrou num enorme marasmo, com pontuais excepções no que respeita a regras de transporte de animais, em 2007, e protecção dos animais de laboratório com a transposição da Directiva n.º 63/2010/CE para o nosso ordenamento, em 2013.

Mas, em 2009, Portugal iria sentir um novo fôlego. Nesse ano viria a ser fundado o primeiro (e, até hoje, único, apesar das suas várias ampliações de escopo ao longo do tempo) partido político animalista em Portugal. De início, com o acrónimo PPA (Partido pelos Animais), viria em 2011, há precisamente 10 anos, a ser inscrito no Tribunal Constitucional como PAN (Partido pelos Animais e pela Natureza) e, mais recentemente, PAN (Pessoas-Animais-Natureza), deixando denotar uma ampliação do seu leque de preocupações políticas, abandonando o seu carácter mais especialista para abraçar um perfil mais generalista.

Em 2013, viria a ser criado o cargo de Provedor Municipal dos Animais em Lisboa. Hoje, são já quatro os municípios que têm Provedor dos Animais, havendo já outros três que aprovaram a criação do cargo a nível local. Já existe também um Provedor dos Animais em funções na Região Autónoma da Madeira e foi criada a figura para a Região Autónoma dos Açores. Se só isto não chegar para vos espantar, saibam que em 2021 tomou posse a Provedora Nacional do Animal. É realmente um indicador muito forte da crescente sensibilização da sociedade portuguesa para a urgência de uma mudança de paradigma relativamente à nossa relação com os (outros) animais.

Não foi, por isso, de espantar, que em 2014, a Lei n.º 69/2014, de 23 de Setembro, viesse a estabelecer dois novos crimes, um deles de abandono de animais de companhia e outro de maus tratos. Apesar do grande alarido, para os animais foi, porém, uma vitória mais pequena do que possa parecer, uma vez que a lei apenas protege os ditos “animais de companhia”, deixando de fora a grande maioria das espécies e dos animais utilizados pelo ser humano para todas as outras finalidades, à revelia do que sucede, por exemplo, em Espanha ou França.

Seria preciso esperar pela Lei n.º 8/2017, de 3 de Março, para que uma viragem verdadeiramente histórica acontecesse, até para a doutrina jurídica: os animais deixaram de ser coisas para o Direito. E o legislador não escolheu apenas os animais de companhia: a lei aplica-se a todos os animais, criando grandes constrangimentos para o julgador e, sem dúvida, para certas franjas da sociedade que ainda olhavam (e olham) para os outros animais como meros utilitários. 

Ainda mal tínhamos recuperado o fôlego do impacto da Lei n.º 8/2017 e já estava o legislador novamente, em 2018, a avançar de forma espantosamente rápida, proibindo a utilização de circos com animais selvagens, para, logo em 2019, vir reforçar esta medida. Ainda em 2019, foi o próprio Tribunal da Relação de Lisboa que, num acórdão de Maio de 2019, que li com muito espanto mas também grande entusiasmo, veio dizer, pasme-se, que: “Houve necessidade de fazer uma interpretação actualista e positivista da norma [do art.º 1 da Constituição que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana], abarcando o princípio da dignidade, também, aos animais não humanos, com valor e sentimentos intrínsecos.”

Por momentos senti-me noutras latitudes. Um tribunal superior português a alargar o princípio da dignidade da pessoa humana aos outros animais? Assustadoramente notável. Sem tempo para grande descanso, logo em 2020, as penas por maus tratos e por abandono de animais de companhia subiram, num intervalo de tempo tão curto que não pode deixar de ser significativo.

Em 2021, vemos a aprovação de um Plano Nacional de Desacorrentamento, que prevê ajuda às famílias para reconverterem os espaços onde mantêm os seus animais de companhia, conferindo-lhes maior dignidade e garantindo o respeito pelos princípios básicos de bem-estar animal.

Também em 2021, decorreu a maior manifestação de sempre junto à Praça do Campo Pequeno, em Lisboa, e nas redes sociais, tendo juntado no local cerca de 2000 pessoas que se indignaram com o evento tauromáquico organizado em homenagem a João Moura, suspeito de cometer cerca de duas dezenas de crimes de maus tratos a animais de companhia. A sociedade parece já não perdoar a indiferença ao sofrimento daqueles que são tão próximos de nós.

Esta foi, sem dúvida, a década dos direitos dos animais: a inesperada década em que o legislador começou finalmente a ser corajoso, o julgador consequente, em que a sociedade exigiu mais e o poder político acompanhou. E a sensação que fica é a de que isto ainda está só a começar.

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