Os 100 anos do PCC e a prosperidade chinesa

Se a máquina estatal consegue responder com sucesso a estas metas mais complexas com ideias e políticas económicas inovadoras dependerá muito da abertura para a “improvisação dirigida” por parte de Xi Jinping e do PCC. Nos próximos anos iremos ver qual o impacto que este caminho liderado por Xi irá ter no “Grande Rejuvenescimento da Nação Chinesa” que se quer alcançar até 2049.

100 anos de Partido Comunista Chinês (PCC) em 2021. Um ano que o PCC marca com o anúncio de que erradicou a pobreza extrema no país e estabeleceu uma “sociedade moderadamente próspera”. A China é hoje a líder global em termos de produção industrial, a maior economia exportadora de mercadorias, o principal destino de investimento direto estrangeiro e um país com biliões de dólares em reservas. Daqui a menos de dez anos, tudo aponta que será a primeira economia mundial. E assim, num curto espaço de algumas décadas desde a sua reabertura ao mundo em 1978, a China volta a reocupar um lugar como uma das maiores potências económicas mundiais e que tinha perdido em meados do século XIX.

No mundo dos economistas debate-se incansavelmente e sem fim à vista se esta transformação da economia chinesa tem sido o resultado do dirigismo estatal ou da livre iniciativa do setor privado. Mas uma coisa é certa: não podemos analisar o sucesso económico chinês sem olhar para o papel do PCC, das suas lideranças e dos seus milhões de membros. Desde que assumiu a liderança do país e do PCC em novembro de 2012, Xi tem procurado garantir a centralidade e reforço desse papel para que, ao contrário do que aconteceu ao seu congénere na antiga União Soviética, o partido não seja varrido pela história. No entanto, esta abordagem poderá ameaçar a forma peculiar como se tem desenhado e implementado políticas económicas que têm ajudado o desenvolvimento do país. 

“Partido, governo, militares, civis e academia, leste, oeste, sul, norte, centro, o Partido lidera tudo”

Entre 2012 e 2013, já quase não nos lembramos, tudo parecia estar a correr mal dentro da China. Uma tempestade política com a queda abrupta e prisão de Bo Xilai, secretário do PCC em Chongqing, e um dos mais fortes candidatos à liderança do país e membro do Politburo, um dos órgãos-chave do partido. Uma economia nacional enfraquecida por falhas de governação económica, excessiva capacidade industrial, exportações em queda, empresas estatais fortemente deficitárias e conflitos laborais a crescer. Ao mesmo tempo, a nível externo, Washington reorientava a sua política externa para a região lançando a estratégia “pivot para a Ásia” destinada a conter a ascensão da China começando logo com o acordo de comércio livre Parceria Transpacífica, que excluía Pequim. 

Praça de Tiananmen, no centro de Pequim XINHUA/CHEN ZHONGHAO/EPA
Milhares reuniram-se na praça de Tiananmen para celebrar o centenário do Partido Comunista Chinês XINHUA/LI XIANG/EPA
Participantes do coro acenam na praça de Tiananmen XINHUA/YAO DAWEI/EPA
O Presidente chinês, Xi Jinping, durante o discurso XINHUA/JU PENG/EPA
O Presidente chinês, Xi Jinping, acena sobre um retrato do antigo líder chinês Mao Zedong, depois do discurso ROMAN PILIPEY/EPA
Milhares reuniram-se na praça de Tiananmen para celebrar o centenário do Partido Comunista Chinês ROMAN PILIPEY/EPA
Milhares reuniram-se na praça de Tiananmen para celebrar o centenário do Partido Comunista Chinês XINHUA/LAN HONGGUANG/EPA
Milhares reuniram-se na praça de Tiananmen para celebrar o centenário do Partido Comunista Chinês ROMAN PILIPEY/EPA
Participantes ensaiam antes das celebrações na praça de Tiananmen ROMAN PILIPEY/EPA
Foram lançados balões durante as comemorações na praça de Tiananmen XINHUA/JU ZHENHUA/EPA
Foram lançadas pombas que sobrevoaram a praça de Tiananmen XINHUA/SUN FEI/EPA
Aviões voam em formação durante uma comemoração WU HONG/EPA
Helicópteros sobrevoam a praça de Tiananmen formando o número 100 ROMAN PILIPEY/EPA
Os líderes executivos de Hong Kong e Macau, Carrie Lam e Ho Iat-seng respectivamente, são vistos num ecrã CARLOS GARCIA RAWLINS/Reuters
O discurso do Presidente chinês Xi Jinping é partilhado num ecrã ROMAN PILIPEY/EPA
Militares chineses marcham na praça de Tiananmen ROMAN PILIPEY/EPA
Agentes policiais chineses posam junto ao memorial do primeiro Congresso Nacional do PCC ALEX PLAVEVSKI/EPA
Uma criança posa com uma bandeira junto ao memorial do primeiro Congresso Nacional do PCC ALEX PLAVEVSKI/EPA
Várias pessoas assistem à transmissão em directo das celebrações que marcam o centenário do PCC ALY SONG/Reuters
Participantes ensaiam antes das celebrações dos 100 anos do PCC CARLOS GARCIA RAWLINS/Reuters
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Praça de Tiananmen, no centro de Pequim XINHUA/CHEN ZHONGHAO/EPA

Quando, no final de janeiro de 2013, Xi Jinping passa a liderar o PCC, a sua agenda era clara. Salvar o partido ameaçado não só por desafios domésticos e externos mas também por sinais evidentes de decadência interna, lutas ideológicas e inúmeros casos de corrupção envolvendo os seus quadros. Xi lançou uma campanha anti-corrupção que investigou milhões de quadros do partido, sancionou muitos milhares, prendeu e executou alguns altos funcionários do PCC. Nem “moscas” (militantes comuns) nem “tigres” (altos quadros) têm sido poupados. Uma campanha que serviu para passar a mensagem interna de que era preciso disciplinar o partido para que não colapsasse. Mas também para responder a uma das principais críticas da sociedade chinesa à governação do país revelada em inúmeras sondagens e inquéritos. Xi procurava ganhar legitimidade política junto de uma ala crítica crescente no partido e da sociedade chinesa pondo fim à imagem de um PCC ao serviço de uma elite corrupta e procurando-o afirmar antes como um bastião de defesa dos interesses nacionais e de garantia de estabilidade.

A campanha tem também um outro objetivo: fortalecer a capacidade organizacional do partido, desde o treino político e ideológico aos requisitos de entrada para candidatos a membros do partido. Passados oito anos, o PCC está em todo o lado e o Pensamento de Xi Jinping também, agora incluído na constituição do partido. Um estatuto que o coloca ao mesmo nível do fundador da República Popular da China, Mao Zedong, e do arquiteto da modernização e abertura do país, Deng Xiaoping. O controlo do PCC sobre a sociedade chinesa nunca pareceu tão grande como agora. Qualquer foco de resistência doméstica ou potencial ameaça ao partido tem vindo a ser progressivamente reprimida quer se trate de advogados, ativistas de direitos humanos, empresários de sucesso ou movimentos pró-democracia. Uma das áreas onde esse controlo se nota de forma mais clara é a máquina estatal que implementa as políticas económicas.

A emergência do Partido-Estado capitalista

No sistema político chinês, em termos formais, o PCC e o Estado são entidades separadas com Xi a liderar o PCC e o primeiro-ministro Li Keqiang à frente da máquina estatal. O sistema é composto por duas hierarquias verticais – o PCC e o Estado – mas, na prática, não existe uma separação clara. Ambos se cruzam e tal como o primeiro-ministro é membro do Comité Permanente do Politburo, o órgão mais importante do PCC e que define as grandes políticas nacionais, os burocratas ocupam simultaneamente posições nas duas hierarquias.

A máquina estatal – administração pública chinesa e empresas estatais – emprega milhões de pessoas. No topo 1% da administração pública e empresas estatais estão cerca de meio milhão de pessoas consideradas a elite política chinesa e que são nomeados diretamente pelo PCC e que vão rodando por vários cargos públicos pelo país. Gerir uma administração pública e empresas estatais com esta dimensão num país vasto como a China está longe de ser simples. Um estudo recente de Margaret Pearson, Meg Rithmire e Kellee Tsai revela como a liderança de Xi tem procurado expandir a autoridade do PCC sobre esta máquina estatal. Ao definir regras do jogo mais claras, tem ajudado a criar e consolidar o que as autoras apelidam de “Capitalismo de Partido-Estado” [1]​. 

Este tipo de capitalismo destaca-se pelo uso estratégico de vários instrumentos de controlo e intervenção na economia como a reativação de células do PCC no seio das empresas públicas e privadas ou uma política industrial agressiva apoiada por fundos de investimentos estatais para encorajar a inovação e autossuficiência doméstica e transformação industrial. Ou ainda a cooptação de empresas privadas, nacionais e estrangeiras, como colaboradoras do Estado na massificação de um sistema de segurança e vigilância eletrónica nacional ou mesmo a disciplina do sector empresarial caso ultrapassem as linhas vermelhas políticas desenhadas pelo PCC (como por exemplo qualquer crítica ao desrespeito pelos direitos humanos no país por parte das empresas estrangeiras) através de novas regulações, sanções fiscais, boicotes comerciais ou pedidos de desculpas.

O estudo conclui que se está a assistir a um poder cada vez mais estrutural e profundo por parte do Partido-Estado no sistema económico chinês. Ainda é cedo para se dizer qual poderá vir a ser o impacto desta abordagem. Mas os passos que estão a ser tomados podem ameaçar um modelo de governação estimulado por Deng Xiaoping desde a abertura do país e que se tem caracterizado pela experimentação. Aos objetivos económicos gerais definidos pelo governo central, as lideranças locais respondiam com soluções próprias, variadas e maleáveis consoante o contexto específico e que contribuíram para políticas de desenvolvimento de sucesso nas regiões chinesas. É o que Yuen Yuen Ang, no seu livro How China Escape the Poverty Trap, apelida de “improvisação dirigida” e que está longe do que se poderia esperar de um país como a China, isto é, um controlo autoritário centralizado a partir de Pequim [2].​ Não existe, tal como gosta de realçar Ang, um modelo de desenvolvimento chinês mas sim múltiplos modelos distribuídos pelas várias regiões do país.

“Atravessar o rio sentindo as pedras”

Na China, a máquina estatal implementa políticas públicas dentro dos limites definidos pelo PCC. Não lhe cabe ser a origem da política pública ou definir a orientação política. No entanto, desde a abertura do país ao exterior em 1978 até à atual liderança, esses limites foram sempre definidos de forma flexível desde que se respeitasse três grandes metas gerais: crescimento económico, geração de rendimento e estabilidade política.

Com a abertura do país em 1978, a liderança do PCC sob Deng Xiaoping, em vez de apostar na democratização ou liberalização formal do país, optou antes por reformar a vasta burocracia chinesa de modo a prestar contas ao partido e a estimular a competição no seu seio. O PCC passou a avaliar os seus quadros segundo as três grandes metas gerais, preocupando-se pouco com os instrumentos ou mecanismos que pudessem ser adotados a nível local para que estas fossem alcançadas. Como os quadros são nomeados e não eleitos, esta avaliação acabava por funcionar como um relatório de prestação de contas. Por outro lado, a competição era promovida através de um ranking de localidades. Os líderes das localidades mais bem classificadas eram promovidos ou transferidos para melhores localidades, ganhavam um bónus, prestígio e mesmo títulos honorários.

Estes incentivos estimularam os líderes locais a promover a transformação estrutural da economia do país, muitas vezes em forte articulação com o sector empresarial privado, através da industrialização e comércio. E, em simultâneo, transformaram também uma burocracia chinesa numa máquina administrativa altamente competitiva, centrada nos resultados económicos e pronta a responder às necessidades dos seus parceiros por excelência: as empresas. Uma relação crucial mas muitas vezes construída com base na troca de favores financeiros alimentando redes de corrupção.

Nos últimos anos, este modelo burocrático empreendedor e adaptativo tem sido posto à prova porque os resultados económicos já não chegam como metas. Agora também é preciso ter em conta as novas expectativas da sociedade como a redução da poluição ambiental, mais e melhores serviços públicos principalmente nas áreas da saúde e educação. E que já estão presentes no 14.º Plano Quinquenal de desenvolvimento para 2021-2025, revelando a vontade da liderança chinesa de uma viragem estratégica em termos económicos, ambientais e sociais. Num discurso recente no mês de agosto, Xi veio reforçar esta viragem afirmando o desejo de construir uma “prosperidade comum” que distribuísse melhor a riqueza no país através do sistema fiscal. 

“Circulação Dual”, o novo modelo de desenvolvimento económico

O novo Plano destaca quatro áreas estratégicas para os próximos anos: desenvolvimento de tecnologias domésticas/autónomas, promoção de um novo modelo de urbanização, provisão igualitária de serviços públicos e produção mais verde. Na base deste plano está o que é apelidado de “circulação dual” como novo modelo de desenvolvimento económico. Se, nos últimos 30 anos, a China abraçou a economia global e a circulação internacional – comércio internacional, investimento e intercâmbios humanos –, agora e para a frente, reforçando uma estratégia que já vinha a ser desenhada nos últimos anos, a circulação doméstica – construção e desenvolvimento de mercados domésticos com uma crescente classe média – passa a ocupar as atenções dos líderes chineses. Este novo modelo de desenvolvimento económico vem responder ao desejo por uma melhor qualidade de vida pela população chinesa mas também vem dar resposta a um ambiente internacional cada vez mais desafiante marcado por tensões comerciais, políticas e de segurança com Washington e Bruxelas.

Se a máquina estatal consegue responder com sucesso a estas metas mais complexas e difíceis com ideias e políticas económicas frescas e inovadoras dependerá muito da abertura para a “improvisação dirigida” por parte de Xi e do PCC. Num contexto em que o partido está mais interessado em impregnar-se na gestão das empresas privadas e moldar as relações sociais em geral. Nos próximos anos iremos ver qual o impacto que este caminho liderado por Xi irá ter no “Grande Rejuvenescimento da Nação Chinesa” que se quer alcançar até 2049.

[1] Pearson, Margaret, Rithmire, Meg e Tsai, Kelly S., Party-State Capitalism in China, Harvard Business School Working Paper 21-065 (2021), disponível em: https://www.hbs.edu/ris/Publication%20Files/Party-State%20Capitalism%20in%20China%204.16.21_50e84643-faa0-4e84-add0-f0f0d7b4b323.pdf
[2]​ Ang, Yuen Yuen, How China Escaped the Poverty Trap (Ithaca: Cornell University Press, 2016

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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