Um papão chamado ansiedade

Fazia tudo para fazê-lo feliz, incluindo afastar-se do teatro, das pessoas do teatro, que o faziam sentir-se inseguro e ciumento. Fez-se triste, incompleta, uma estranha para si própria. O primeiro ataque de pânico surgiu quando saíram de casa dele, depois de terem tido uma maravilhosa tarde de cama e de amor.

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Hailey Reed/Unsplash

Sofre de ansiedade. O problema começou aos 19 anos quando teve o primeiro namorado e começou a estudar Literatura na faculdade. Em criança e na adolescência era até anormalmente calma e confiante. O primeiro episódio de ansiedade talvez tenha surgido porque quis esconder algo do rapaz com quem andava enrolada. Quando deram os primeiros beijos, ainda não gostava muito dele, só se apaixonou meses depois de terem começado a namorar.

Nesses primeiros dias em que trocavam beijos sem amor mas com tesão, na relva do jardim perto do sítio onde moravam, e ela sentia a intumescência dele dentro dos jeans, aconteceu ir almoçar com uma amiga que há muito revelava sentir atracção por rapazes e raparigas. Insistia para que experimentassem ir para a cama. Nesse almoço em casa dela, regado em demasia a vinho branco, conseguiu convencê-la a darem um beijo na boca. Lembra-se da estranheza que sentiu. Sentadas no sofá, rodeadas pelos bibelôs da mãe da amiga. Beijou pela primeira vez uma mulher na boca. Aquilo trocou-lhe mesmo a volta ao circuito de fusíveis. Por mais que a literatura homoerótica a fascinasse, o que absorvia desse universo não passavam de fantasias, e nunca, jamais, pensou em concretizá-las.

A sua amiga comportava-se como se fizesse aquilo há anos, era-lhe natural despir-lhe a blusa e lamber-lhe os seios, tirar-lhe as cuecas e abocanhar-lhe o sexo. Deixou-se ir, não sabia ao certo o que estavam a fazer, não teve prazer, via-se de fora a ter aquela experiência, só isso. Um acontecimento mesmo estranho. Tomou um banho demasiado longo quando chegou a casa dos pais. Sentia vergonha. Na altura, achava que tinha feito algo que nunca lhes poderia contar. Sofria de uma certa homofobia interna. Nessa noite não telefonou ao tal rapaz com quem andava enrolada, como faziam todas as noites; ficou calada, absorta, com medo de si própria e daquilo que tinha feito. Queria esquecer-se do que tinha acontecido.

Quando passaram alguns meses, e depois de ter começado a namorar com o tal rapaz, não conseguia tirar da cabeça que tinha feito aquilo. Não conseguia dormir bem e andou dias a tentar ganhar coragem para contar ao namorado o que tinha acontecido. A reacção dele, tal como tinha calculado, foi péssima. Chorou, quis acabar o namoro, chamou-lhe lésbica. Não conseguia fazê-lo ver que tinha sido uma experiência, um erro, numa altura em que ainda nem sequer namoravam, apenas andavam a curtir no jardim à tarde. Durante essas semanas em que tentou fazê-lo acreditar em si, perdeu algum peso e confiança, deixou de acreditar em si própria. Retomaram o namoro e tornou-se uma rapariga submissa, coisa que nunca tinha sido com ninguém na vida, a sua natureza não era essa. Fazia tudo para fazê-lo feliz, incluindo afastar-se do teatro, das pessoas do teatro, que o faziam sentir-se inseguro e ciumento. Fez-se triste, incompleta, uma estranha para si própria. O primeiro ataque de pânico surgiu quando saíram de casa dele, depois de terem tido uma maravilhosa tarde de cama e de amor. Iam abraçados e alegres a caminhar até à paragem de autocarro. De repente, o seu coração disparou. Como se tivesse desatado a correr. Não conseguia respirar, as mãos suavam, as pernas tremiam. Pensou que ia ter um ataque cardíaco. Foram para o hospital. Exames e mais exames, nenhum problema físico.

Depois desse dia, uma vez por mês tinha um episódio daqueles. Terrível, assustador. Quando menos esperava, zás! Aquilo, uma sensação de morte iminente, apoderava-se dela sem piedade. Passaram-se quase 25 anos desde esse primeiro episódio. Ao longo dos anos foi aprendendo a controlar a sensação de medo e a ter um comprimido SOS no caso de ser necessário. Mas só quando é mesmo estritamente preciso, caso contrário há outras formas. A distracção costuma funcionar. Ver televisão, fazer scroll nas redes sociais, qualquer coisa que afaste os pensamentos de medo e de desmaterialização da realidade. É preciso aprender a viver com aquilo que se tem. Mas não é fácil. Faz sempre uma vénia quando conhece alguém com o mesmo problema. Aqueles que vivem com ansiedade, esse papão escondido dentro dos próprios. Já não sofre de homofobia interna. O papão raramente dá sinal de vida.

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