Manter os valores europeus e negociar com o Diabo. O que pode fazer a UE perante a crise no Afeganistão?

Desde 2002, a União Europeia investiu mais de quatro mil milhões de euros no Afeganistão. Nada que impedisse a tomada do poder por parte dos taliban. Agora, discute-se o que fazer perante a crise no país.

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Vinte anos depois, taliban voltaram a controlar Kabul Reuters/WANA NEWS AGENCY

As dúvidas que poderiam subsistir sobre as características do governo taliban no Afeganistão têm vindo a esfumar-se rapidamente. Quase tão rapidamente como o poder político daquele país sucumbiu aos taliban na sequência da retirada militar dos Estados Unidos, 20 anos depois.

Apesar de o enviado americano para a paz no Afeganistão, Zalmay Khalilzad, ter agradecido no sábado a cooperação do Governo taliban para a retirada de cerca de 250 pessoas, os relatos que chegam do país não deixam grande margem para dúvidas. As mulheres já viram os seus direitos aniquilados, os jornalistas são torturados quotidianamente e a violência serve como arma repressiva para esmagar a liberdade — conforme já denunciado pela Amnistia Internacional.

Nesta altura, enquanto os Estados Unidos se concentram na retirada dos cidadãos do território, a União Europeia (UE) teima em definir uma estratégia para o conflito humano do Afeganistão. “Estamos já a falhar em termos daquilo que são as nossas responsabilidades no apoio à população afegã”, diz ao PÚBLICO Marisa Matias, eurodeputada eleita pelo BE.

Para a vice-presidente do Grupo da Esquerda no Parlamento Europeu (PE), é “evidente” a inércia da UE perante a crise do país. “Estamos a falar de responsabilidades que nos assistem do ponto vista do direito internacional e daquilo que são as nossas obrigações”, insiste, defendendo que a acção da União não se deve limitar a ajudar “as forças europeias no país”. Deve, também, prestar auxílio aos afegãos.

Por isso, já deveriam ter sido criados corredores humanitários para receber refugiados, através de uma estratégia europeia comum, defende a eurodeputada. A realidade, contudo, é “precisamente a contrária”. “Ainda agora assistimos à posição dos líderes Áustria, República Checa e Eslováquia a dizer que não há lugar para afegãos na Europa”.

Para perceber o que se passa no país, Marisa Matias puxa o filme atrás e critica a convivência dos países europeus com a “intervenção ilegal” no Afeganistão, referindo-se à ocupação dos Estados Unidos que não teve o parecer do conselho de segurança das Nações Unidas.

Uma intervenção que teve “sempre” como objectivo a “disputa do poder” e “nunca” a “promoção da igualdade e da liberdade”. Se assim fosse, o país “não teria colapsado como um baralho de cartas ao avanço dos taliban”.

E agora? “Não resta muito” à UE, reconhece a eurodeputada, acrescentando, contudo, que não se pode “cair na armadilha” de encarar o governo afegão como uma “espécie de taliban 2.0”, “mais progressistas”. “Basta olhar para a composição do Governo”, atira, dando um exemplo concreto: o ministro do Interior, Sirajuddin Haqqani, líder da rede Haqqani, está na lista de terroristas do FBI.

“Neste momento o que nos resta, e é francamente limitado, é ter uma estratégia de acolhimento das pessoas que estão com necessidade e apoiar o melhor que podemos e soubemos a forças de resistência”.

“Negociar com o Diabo”

A comunidade internacional olha periclitante para o cenário político do Afeganistão. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, já apelou ao diálogo com os taliban para evitar “milhões de mortes”. A própria União Europeia já fixou cinco condições para estabelecer uma “relação operacional” com o poder político do país. A saber: a prevenção da exportação do terrorismo; o respeito pelos direitos humanos; a formação de um Governo inclusivo; a autorização de ajuda humanitária; e a permissão para afegãos e civis europeus abandonarem o país.

“Não devemos deixar de ter um diálogo com as autoridades afegãs, mas isso não pode significar que cedamos nos nossos princípios e valores”, defende Paulo Rangel, deputado no Parlamento Europeu eleito pelo PSD, realçando, por um lado, a complexidade desse diálogo, e por outro, a sua importância para uma “melhoria do tratamento dos cidadãos afegãos”. “É evidente que não pode haver uma relação de normalidade, mas dado o carácter excepcional e grave do ponto vista humanitário, pode haver necessidade de algum realismo para tentar conter danos maiores”.

Para Rangel, existem três campos de actuação para a UE: a intervenção no terreno; o apoio financeiro e a ajuda aos migrantes. No terreno, por exemplo, a União deve “encontrar uma forma de ter acesso ao aeroporto de Cabul”, para procurar “influenciar os fluxos” de passageiros, em articulação com a Turquia, o Qatar e os Emirados Árabes Unidos. “Essa cooperação para ter mais presença no terreno para fins humanitários não está excluída, mas eu diria que é bastante complexa”, assinala.

Depois, existe a “ajuda financeira” ao país, mediante o “cumprimento e o respeito de certos valores e princípios”. Um instrumento para “tentar moldar as políticas do Governo taliban”, mas de “utilidade incerta”, reconhece Rangel.

Por último, na ajuda aos migrantes, o eurodeputado alerta para a resistência de alguns países da UE para acolherem refugiados. Sobretudo “nesta primeira fase”, a UE deve ter um “papel decisivo” no financiamento aos países vizinhos ao Afeganistão para garantir “condições de acolhimento a refugiados”. “Isto implicaria que os Estados vizinhos do Afeganistão pudessem fazer essa política de proximidade e acolhimento, embora pelo menos em parte custeada pelo orçamento da UE”.

Isabel Santos, eurodeputada eleita pelo PS, concorda: “Temos de criar corredores humanitários de forma segura e ordeira”. A socialista lembra que cerca de 90% das pessoas que vão sair do Afeganistão devem seguir para os países vizinhos. E, perante isso, a UE deve agir e “criar um mecanismo de solidário de partilha da responsabilidade”, uma “responsabilidade” e uma “obrigação” ao abrigo da Convenção de Genebra.

“O pacto para as migrações e asilo continua sem grande evolução e continuamos sem ter uma resposta comum e solidária para este problema. Com a ausência dessa resposta estamos na iminência de mais um desastre humano e temos de assumir a responsabilidade por esse desastre”, alerta a eurodeputada.

Paralelamente a essa estratégia para o acolhimento, é necessário fazer chegar “alimentos, medicamentos e coisas tão básicas” à população afegã. E, para tal acontecer, Isabel Santos não tem dúvidas: não há outra “saída do que alguma conversação” com os taliban. “É evidente que não há taliban ‘fofinhos’, mas por vezes a política é também a arte de negociar com o Diabo”.

Uma coisa parece certa: a UE não pode “olhar para o lado”. De forma mais directa ou indirecta, vários países da União partilharam “objectivos” aquando da ocupação do Afeganistão. “É bom lembrarmo-nos do passado, da Cimeira das Lajes e de tudo o que aconteceu depois. Não podemos agora lavar as mãos como Pilatos e fazer de conta que não é nada connosco”.

Nem mesmo 20 anos de ocupação americana e quatro mil milhões de euros investidos pela UE desde 2002 serviram para “criar uma estrutura de Estado” no Afeganistão. O futuro, para já, é incerto, mas já se podem tirar ilações do passado. Para Isabel Santos, fica a lição de que as intervenções militares são um “complemento de solução”. A verdadeira solução está na “educação” e no “desenvolvimento social”. “A grande lição que devemos tirar da intervenção no Afeganistão é que as botas no chão e as tropas no território não são a solução para os problemas das pessoas”.

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