Harmonização: Que vinho pede o marisco?

É sinónimo de Verão, de férias, de prazer à mesa – e um aliado natural dos brancos da região dos Vinhos Verdes. Contudo, o marisco não sabe todo ao mesmo – e são diversas as preparações que pode assumir. Eis algumas pistas para facilitar a escolha.

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Anna Costa

Amêijoas 

Há várias formas de preparar amêijoas, mas claro está que o que nos vai na cabeça é sempre a receita celebrizada pelo escritor e gastrónomo Bulhão Pato. Provavelmente porque, sendo a mais simples, é a que melhor reserva e potencia o sabor original do bivalve, a sua natureza macia, textura firme e aveludada. Azeite, alho, coentro, azeite, e já está. O simples é, de facto, quase sempre o mais saboroso. Há também quem, em vez de alho, use alho-francês, quem faça um estufado com molho de tomate ou cebolada, e ainda a receita à espanhola, com cebola, pimento, tomate e vinho branco. 

Mas as amêijoas são à Bulhão Pato, e assunto arrumado. No final há quem goste também de apaladar com pimenta, de refrescar com vinho branco, mas obrigatório é sempre espremer um bom gomo de limão. A escolha do vinho deve ter sempre em atenção este pormenor da acidez cítrica e tempero. Vinhos mais macios, com menos taninos mas com boa estrutura e já com algum tempo de garrafa serão os melhores parceiros para as melhores amêijoas.

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Enric Vives-Rubio/Arquivo Público

Percebes 

É provavelmente o marisco mais consensual e mais consumido ao longo da costa portuguesa. E também na Galiza, onde é apreciado da mesma maneira, ou seja, como petisco, que com o seu sabor salgado, fresco e iodado funciona como entrada para os pratos de peixe ou marisco de maior complexidade culinária, ou pura e simplesmente para acompanhar um copo bem refrescante no bar ou esplanada. Se for na praia ou com o ar de maresia, tanto melhor. Come-se à mão e, apanhada a técnica para retirar a casca que lhe envolve o pedúnculo comestível, torna-se viciante. Encontra-se ao longo de toda a costa, nas zonas rochosas, mas é particularmente apreciado na Costa Vicentina e no Sudoeste do Algarve, onde as escarpas rochosas são particularmente fustigadas pelas ondas do Atlântico. Daí que se diga que, quanto maiores e mais arriscada for a sua captura, melhores serão. Os mais gordos, escuros e de lábio vermelho são os mais saborosos. 

Ao lado apetitoso junta também o atractivo de ser muito fácil de preparar e servir. Basta uma rápida fervura, não mais que dois minutos, escorrer e está pronto a levar à mesa. A tradição é servir frios, muitas vezes até com cubos de gelo. Na Galiza comem-se também ainda quentes, logo a servir à fervura, o que lhe acentua os sabores. Um estilo que se vai alargando pelo litoral minhoto. Pelo sabor salino e iodado, pede vinhos com acidez viva, frutados e intensos. 

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Pedro Granadeiro/Global Imagens

Arroz de lavagante 

Distingue-se da lagosta por ter os dois primeiros pares de patas em forma de pinças – são mesmo fortes, é melhor não testar –, mas também pelas suas carnes mais macias e suculentas, que lhe conferem um sabor e uma textura distintos. Para muitos é mesmo o rei dos mariscos, muito valorizado também porque não é assim tão abundante nas nossas costas, o que faz que seja necessário recorrer às águas francesas e do Reino Unido, fazendo dele um tesouro muito apreciado. 

O melhor é o lavagante europeu, que habita sobretudo as águas do leste do oceano Atlântico, de cor negra e tons azulados, o que faz que o identifiquemos como lavagante azul, mas que uma vez cozinhado adquire a coloração laranja-avermelhada intensa, tal como as espécies de águas mais quentes, que não têm a mesma textura e sabor. 

Pode servir-se cozido ou grelhado, acompanhado com diversos tipos de molho, mas por cá o mais celebrado é o típico arroz malandro feito com o caldo da sua carcaça. O ideal é mesmo o carolino do Mondego, nas suas versões mais rústicas, ou seja com pouco ou nenhum polimento, de modo a conservar o máximo da sua goma. 

Pela envolvência, suculência, textura firme e elegante, pede vinhos de boa acidez, boca com volume, textura macia, intensidade e alguma cremosidade. 

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Nuno Ferreira Santos/Arquivo Público

Lingueirão 

Normalmente mais associado à culinária algarvia, o lingueirão é um bivalve de concha frágil, estreita e alongada, que se esconde nas areias das praias, dentro de tocas que ele próprio constrói. Dada a sua forma e o perfil cortante das conchas, mais a norte recebem também a denominação de canivetes ou navalhas. Que ninguém se corte, que o sabor é intenso, a textura firme e aveludada, à imagem das amêijoas. 

Daí que em boa parte do território a tradição seja de seguir a receita à Bulhão Pato, sendo também comum prepará-los, ou seja abri-los, na chapa ou na sertã, e servir com molho de manteiga e sumo de limão. Recomenda-se, por isso, um branco mais encorpado, de intensidade marcante mas também já com notas de evolução, para equilibrar a acidez cítrica do limão. 

É na cozinha algarvia que é apreciado como prato típico e com culinária mais versátil. Das famosas sopas de lingueirão ao arroz malandrinho, que é um prato emblemático da região. A tradição é condimentar com algumas sementes de malagueta no refogado inicial e depois, com o arroz – carolino, claro está! –, um pouco de açafrão a conferir o toque algarvio de sabor e aromas.

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Pedro Granadeiro/Global Imagens

Sapateira 

Muito popular nos snack-bares e casas de marisco, a arte de aproveitar a carapaça da sapateira, ou caranguejola, para a encher com um recheio ou paté, aproveitando as carnes das suas partes mais finas e as ovas (se for o caso), não será longa tradição na preparação de mariscos na nossa culinária. Ao que tudo indica, a tendência ter-se-á afirmado com a chegada dos habitantes das ex-colónias, que trouxeram com eles o gosto por alguns dos seus petiscos favoritos. 

Mostra-o a multiplicidade de receitas sem particular vinculação a qualquer tradição ou região do país, assim como a grande aleatoriedade no uso de ingredientes, igualmente com escassa ligação à nossa tradição culinária. Da maionese à mostarda, cerveja, whisky, picles ou molho inglês, de tudo um pouco referem as receitas que, entretanto, se popularizaram. 

O importante, no entanto, é que a sapateira se mostre, enquanto viva, densa e enérgica. As preferidas são as fêmeas, mais saborosas devido às suas ovas, que são também um ingrediente que valoriza o recheio. Daí que as melhores sejam a que se come entre Setembro e Janeiro, altura em que se dá a desova. Pelo carácter pastoso e a natureza mais impositiva dos ingredientes, recomendam-se vinhos com afirmação aromática e intensos no palato.

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Adriano Miranda/Arquivo Público

Cracas

Uma especialidade exclusiva dos Açores, um petisco local de grande delicadeza e talvez o marisco de sabor marinho mais intenso. Uma delícia, mesmo. 

Mesmo nos Açores as cracas não são muito abundantes em bares e restaurantes, provavelmente pelas dificuldades na apanha e também na dificuldade em retirar da própria concha para se poder comer. Mas vale mesmo a pena, acreditem! 

Chamam-lhe os primos açorianos dos percebes – são da mesma família –, desenvolvendo-se igualmente em colónias nas rochas mais batidas, no litoral das ilhas açorianas. A concha de camadas calcárias tem forma cónica, tipo copo mas muito fechada, de onde o marisco é retirado com um gancho metálico, normalmente um prego de média dimensão com o bico curvado ao estilo de anzol. 

Tal como os percebes, cozinham-se num grande volume de água do mar, mas neste caso a fervura tem de ser bem mais longa, com cerca de 40 minutos. 

Pela consistência e rigidez, têm de ser arrancadas da rocha à martelada, mas o esforço é largamente compensado pelo sabor muito muito fino e delicado com um incomparável sabor a mar. Depois de extraído o marisco da cavidade, bebe-se também o líquido que sobrou no fundo. Um autêntico e revigorante shot de mar! 

Os vinhos têm de ser crocantes, intensos e minerais.


Este artigo foi publicado no n.º 2 da revista Singular

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