Do Ground Zero ao vale de Panshir – fragmentos de memória e actualidade

Adelino Gomes foi o primeiro enviado do PÚBLICO aos EUA após o 11 de Setembro.

Foto
Ray Stubblebine/REUTERS

A campainha toca, insistente.

 – O World Trade Center está a arder! – grita da soleira da porta o fotógrafo do Público. Pediu para ir a uma pastelaria da esquina beber um café, nunca mais aparece, e a dona da casa, minha entrevistada, mal disfarça já sinais de enfado.

Peço a Miguel Silva que se deixe de brincadeiras e pegue na máquina, porque a entrevista já começou e “a Senhora Professora” tem outro compromisso para esta tarde.

– Vi um avião ir contra uma das torres. Se não acreditam, liguem a televisão.

Manuela Arcanjo hesita, mas a assertividade de Miguel Silva não lhe deixa alternativa e dirige-se para a divisão onde se encontra o único aparelho de televisão da casa.

É lá, fotógrafo e eu de pé, ex-ministra da Saúde e antiga secretária de Estado do Orçamento sentada na borda da cama, que os três assistimos ao inimaginável. “O espaço aéreo dos EUA acaba de ser interditado”, anuncia Paulo Camacho na SIC. O que está a passar-se em Nova Iorque fica a pesar sobre a entrevista, que se prolonga até ao início da noite, não sem ceder ainda uma vez mais algum tempo à trágica actualidade, explicarei na peça que só sairá na Pública em meados de Outubro.   

O jornal conclui que é preciso reforçar a cobertura (que se revelará excelente, aliás) da correspondente permanente nos EUA, Ana Gomes Ferreira. Quatro dias depois, parto no primeiro avião que a TAP consegue fazer aterrar no aeroporto JFK.   

Da busca pelas peças que de lá enviei não constam (!?) nem o meu primeiro olhar sobre a cidade, começado a escrever a partir da janela do avião, nem o percurso a pé, horas depois, pelas zonas acessíveis de Downtown Manhattan, nem o momento em que olhei pela primeira vez in vivo para o Ground Zero.  Apenas, datada de 17, a descrição do primeiro “tour” depois da tragédia. Conduzido pelo “mesmo guia que acompanhou três dezenas de latino-americanos e portugueses ao terraço das torres gémeas, meia dúzia de horas antes dos atentados.”

E, da manhã do dia seguinte, em Wall Street, a história do milagroso encontro com “aquela morena vestida de preto do outro lado da rua”, que uma detective gorda me aponta como a única pessoa capaz de resolver o impossível. “Mar-guê-ri-tá”, aliás Margarida Correia, filha de pais oriundos de Valença do Minho, trabalha há um ano como editora da revista da Bolsa de Nova Iorque. Um quarto de hora depois, já o nome do Público consta da lista que permite aos happy-few assistirem ao “grande e simbólico espectáculo de que os americanos precisavam para acreditar que os negócios prosseguem como habitualmente”: a reabertura da Bolsa de Wall Street, “apenas uma vez fechada por tanto tempo [quatro dias] na sua história de 209 anos”.

Dedico todo o dia à busca de histórias do quotidiano da cidade. Pessoas que há 25 anos  queimaram a bandeira correm agora a dar sangue, aquilo que era dantes um acto de generosidade tornou-se agora um dever cívico;  comprar acções passou a ser um acto patriótico; comprar um bilhete de avião um afirmação de desafio, leio uma manhã numa excelente síntese daquilo que o articulista define como  um acordar súbito dos norte-americanos para “uma paisagem moral alterada”.

Nunca esqueço, contudo, a “conexão portuguesa”. O adeus luso-americano em Newark a António da Rocha, corretor da empresa Cantor Fitzgerald. A fuga do bancário (mãe portuguesa, pai galego) Joe Salgado, que desce 46 andares, corre por entre pedaços de avião, carros esmagados, o braço de um homem nas mãos do polícia que o tentou tirar de debaixo de uma viatura, uma nuvem de poeira que o envolve, o deita ao chão, o faz gatinhar na escuridão total, a ponte de Brooklyn, e por fim um telefone em funcionamento, num restaurante a mais de 20 quilómetros de Manhattan. Um dia na vida do representante de Portugal nas Nações Unidas, embaixador Seixas da Costa – “Timor, Angola, Bush, do pequeno-almoço ao jantar”.

Quando Manuel Carvalho me endereçou o convite para recordar esses dias, além dos tais dois primeiros olhares em busca de sinais do ex libris (donde, há menos de dois meses, contemplara com a família a cidade que os nova-iorquinos gostavam de chamar Capital do Mundo), do que me lembrei com maior nitidez foi da celebração colectiva da dor das famílias no Yankee Stadium, em Keyspan Park. “Naquele dia não morreram seis mil pessoas; naquele dia uma pessoa morreu seis mil vezes. Quando alguém mata alguém é como se matasse toda a gente; quando alguém salva alguém, é como se salvasse toda a humanidade”, ensinou o rabi Marc Gellman, depois das preces do imã islâmico, do pastor luterano, do bispo católico, do canto plangente do sacerdote do templo sikh de Richmond Hill, da Avé Maria de Schubert na voz poderosa de Placido Domingo.

Saberei quando regressar que, por aqueles dias, já Alexandra Lucas Coelho, já Paulo Moura se dirigiam para os palcos anunciados de nova/ velha guerra. Não tardo a juntar-me a eles e a um punhado nutrido de repórteres – vários, e bons, também de Portugal.

Ao folhear as páginas do Público de há 20 anos, deparei com um “Adeus a Massoud, o Leão de Panshir”. O líder da resistência aos talibãs e herói da luta contra a ocupação soviética morrera na explosão de uma bomba colocada numa câmara de filmar por dois falsos jornalistas, 48 horas antes do atentado contra as Torres Gémeas. ”Vamos lutar pela nossa liberdade até ao fim!”, gritaram milhares de afegãos na despedida.

Por coincidência histórica que não surpreenderá ninguém, no momento em que faço esta evocação o mesmo Público informa-me que os talibãs anunciam controlar já o mítico bastião donde Ahmad, filho de Massoud, se declara disposto a prosseguir a luta “pela dignidade, liberdade e prosperidade” do povo afegão.

E nesta mesma noite, ao ver nas televisões imagens de afegãs que, cara destapada, gritam vivas à liberdade nas ruas de Cabul e no Paquistão, invejo os repórteres que, igualmente intrépidos, nos enviam imagens, sons e crónicas do que se passa no terreno. Sempre e em qualquer lugar.

Não conheço profissão mais bela, na qual se misturem, em doses iguais, desafio, responsabilidade e privilégio.

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