É para fatiarem as competências médicas que eles se entendem!

Estamos, enquanto profissão, numa das mais complicadas encruzilhadas das últimas cinco ou seis décadas. Estejamos muito atentos às próximas investidas do poder político contra o Ato Médico.

Durante largos anos, o conceito de acto médico manteve-se num vazio legal que teve como resultado prático inevitável o desenvolvimento de atividades na área da saúde baseadas no charlatanismo.

A anterior lei de bases da saúde (n.º 48/90) estipulou numa das suas bases que seria “definido por lei o conceito de ato médico”.

Em 1999, no governo presidido pelo Eng.º António Guterres e tendo como ministra da saúde a Dr.ª Maria de Belém Roseira, foi efetuada uma negociação com a Ordem dos Médicos com o objetivo de superar essa lacuna legal relativa ao conceito do ato médico.

O ato médico é uma matéria que está inserida nas competências legais da Ordem dos Médicos (OM).

Na sequência desta negociação, foi apresentado e aprovado um projeto de lei na Assembleia da República que, no entanto, nunca chegou a ser publicado, dado que o então Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, o vetou.

Embora parte dos países europeus dispusesse de legislação específica sobre esta matéria, com a chegada ao poder de M. Thatcher na Grã-Bretanha iniciou-se um processo de atribuição de algumas competências próprias dos médicos a outros grupos profissionais, como, por exemplo, prescrever alguns exames diagnósticos.

Este processo, que já estava em desenvolvimento nos Estados Unidos, foi também adotado por alguns estados canadianos.

No âmbito do emergente processo neoliberal no contexto internacional, estas medidas visaram, entre outras, fragilizar nos planos político e reivindicativo o “poder médico” e assegurar que diversas atividades fossem exercidas por outros profissionais a um preço mais baixo.

No nosso país, como as capacidades reivindicativas dos médicos enquanto classe profissional não davam quaisquer garantias de estas medidas serem aceites sem contestação como aconteceu noutros países, a opção de alguns sectores políticos foi manter o tal vazio legal.

Em 31/5/2005, o Conselho Regional do Norte da OM fez um referendo sobre uma proposta de definição do ato médico aos médicos da área geográfica abrangida pela respetiva secção regional que se traduziu numa votação global superior a 40% e onde 98% dos votantes votaram Sim, 0,71% votaram Não e 0,71% dos votos foram brancos ou nulos.

Esta iniciativa do Conselho Regional Norte foi uma reação de inconformismo com a apatia reivindicativa dos outros dois conselhos regionais em torno desta matéria tão delicada para a qualidade do exercício da profissão médica.

A negociação da revisão do diploma das carreiras médicas em 2009, por parte das duas organizações sindicais médicas, num contexto de uma extrema complexidade dadas as disposições prévias da Lei n.º 12-A/2008, bem como do importante aumento dos contratos individuais de trabalho sem qualquer inserção numa estrutura de progressão salarial e de carácter técnico-científico, possibilitou colocar pela primeira vez num diploma legal uma definição de ato médico ainda que “disfarçada" de perfil profissional.

Assim, os artigos 9.º dos decretos-lei n.º 176/2009 e 177/2009 estabeleceram o seguinte:

 “Perfil profissional

1 – Considera-se médico o profissional legalmente habilitado ao exercício da medicina, capacitado para o diagnóstico, tratamento, prevenção ou recuperação de doenças ou outros problemas de saúde, e apto a prestar cuidados e a intervir sobre indivíduos, conjuntos de indivíduos ou grupos populacionais, doentes ou saudáveis, tendo em vista a protecção, melhoria ou manutenção do seu estado e nível de saúde.

2 – A integração na carreira médica determina o exercício das correspondentes funções.

3 – O médico exerce a sua actividade com plena responsabilidade profissional e autonomia técnico-científica, através do exercício correcto das funções assumidas, coopera com outros profissionais cuja acção seja complementar à sua e coordena as equipas multidisciplinares de trabalho constituídas.”

Vários aspetos desta redação basearam-se no texto objeto do referendo na secção regional norte da Ordem dos Médicos.

Entretanto, as “forças anti-ato médico” contra-atacaram e, durante o mês de Agosto de 2016, a então equipa do Ministério da Saúde enviou para algumas organizações um projeto de diploma para “apreciação e eventuais comentários”, visando proceder “à definição e à regulamentação dos atos do biólogo, enfermeiro, farmacêutico, médico, médico dentário, nutricionista e psicológico” (sic).

A leitura dos vários artigos permitia verificar que quase todas as profissões referidas podiam passar a diagnosticar e a prescrever, sendo que a redação do que chamava ato médico não diferia das outras profissões referidas.

Esse projeto tinha objetivos práticos muito claros que eram de esvaziar as competências próprias dos médicos, e de abrir uma “janela” legal para a usurpação futura dessas competências por outras áreas profissionais.

Importa referir que esta tentativa teve a cumplicidade ativa de vários então dirigentes da Ordem dos Médicos.

Em 2019, finalmente, o atual bastonário Miguel Guimarães recorreu à possibilidade legal ao alcance, nomeadamente, da Ordem dos Médicos, e desencadeou a publicação no DR, 2.ª Série, de 5 de Setembro de 2019, do Regulamento nº 698/2019, que “define os atos profissionais próprios dos médicos, a sua responsabilidade, autonomia e limites”.

O Ministério da Saúde recorreu para o Ministério Público da publicação deste regulamento, considerando que a Ordem dos Médicos “não estava habilitada a aprovar um regulamento que proceda à definição do ato médico e demais aspetos ligados a esse conceito…”.

O Ministério Público não acolheu esta pretensão do Ministério da Saúde e mandou arquivar estes autos.

Este é um marco que não pode passar despercebido à generalidade dos médicos, porque o Ato Médico constitui um elemento insubstituível da nossa identidade profissional e de preservação da qualidade do nosso desempenho.

Não é por acaso que o número de médicos sem especialidade tem crescido com grandes benefícios económicos de empresas prestadoras de serviços pagas com os dinheiros públicos.

Para além disso, quanto menos qualificada e diferenciada estiver parte dos médicos, maiores serão as fragilidades da nossa classe e mais fragmentados estaremos na nossa indispensável luta reivindicativa.

Estamos, enquanto profissão, numa das mais complicadas encruzilhadas das últimas cinco ou seis décadas.

Estejamos muito atentos às próximas investidas do poder político contra o Ato Médico.

Este vai ser o principal alvo nos próximos tempos.

O poder político sabe bem que esta é uma barreira que lhe limita as ações contra a nossa profissão.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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