A “tecnologia” é também uma palavra…

Se a revolução industrial fez perder a “mão humana”, a nova revolução pode fazer desconsiderar a mente, a sensibilidade, a inteligência e outras prerrogativas humanas. Entre tecnofilia e tecnofobia há que saber desenvolver a tecnoprudência.

“As palavras ganham”. (P. Eluard e A. Breton,1938)

 No Verão de 1962, Martin Heidegger proferiu a conferência com o título “Língua de tradição e língua técnica”, o qual não designava apenas uma oposição. Fazia alusão a um perigo que ameaçaria a Humanidade no mais íntimo da sua essência. Com o texto seminal “A Questão da Técnica” (conferência proferida em 1953 na Escola Superior Técnica de Munique), Heidegger confronta-nos com a essência da técnica e o ser do Homem. Na sua obra, analisa o que designa por fase tardia da modernidade, a era da técnica. Um período da história que o filósofo descreve como o do fim da metafísica. Em 2021 Heidegger falaria de uma era da tecnologia?

Meditar exige palavras e há palavras que suscitam questionamento e meditação. Como estudante no Instituto Superior Técnico (IST ou o Técnico), o nome do “Massachusetts Institute of Technology” (MIT) dos E.U.A. fez-me questionar: qual era a diferença entre técnica e tecnologia? A resposta à época era simples: resultaria da cultura anglo-saxónica e da desvalorização nela do termo técnico. A nível da Engenharia seria então tecnologia para a América e técnica para a Europa continental. Coisas das línguas e das culturas, pensei eu. Aconteceu, entretanto, a invasão de palavras e ideias que, como magia, criaram usos e significados novos. Tecnologia foi uma delas e o questionamento voltou a justificar-se.

Sabemos que o saber-fazer para atingir objectivos e para nos protegermos e sobrevivermos é a característica milenar da técnica. O termo deriva de uma palavra grega que designa o que pertence à “techné”. O significado etimológico da palavra tecnologia é conhecimento da técnica, como ocorre com biologia, sociologia ou pedagogia. O termo foi utilizado na Europa pelo menos desde o séc. XVII, mas em meados do séc. XIX o seu uso decaiu, em especial na Alemanha. K. Marx desenvolveu em profundidade (O Capital, 1867-1894) a relação da técnica com o trabalho e escreveu que o processo de produção desconsiderou “a mão humana” e criou “esta ciência toda moderna que é a tecnologia”. A actual tecnologia ampliou o seu âmbito e, no presente, é muito mais que entrelaçamento da ciência com a técnica (ciência técnica ou tecnociência), a investigação e o desenvolvimento. É tudo isso mais inovação, no âmbito empresarial e do mercado, tida como a chave do crescimento económico e da competitividade. Uma inovação salvífica e desejada sem limites e permanente. Será possível e desejável?

É bem conhecida a influência das grandes modificações técnicas nos ciclos económicos, ou “ondas de destruição criativa” (à Schumpeter): uma característica da tecno-economia. Mas a tecnologia actual tem uma envolvente social, psicológica, cultural e militar complexa e, por vezes, oculta: o sucesso dos produtos não depende só das suas características intrínsecas ou utilidade, mas também (e muito) de factores extrínsecos. Acresce ainda o comportamento humano ancestral como receptor de novidades artificiais, talvez explicável pela antropologia. Um reconhecimento de vantagens indiscutíveis mesclado com adaptação forçada e desejo pueril de poder e diferenciação.

A cultura americana exporta com frequência aforismos oportunos. É o caso do dilema de Collingridge (1981): “os efeitos sociais de uma tecnologia não podem ser previstos no início. Quando são identificados já fazem parte do sistema social e económico e o controlo torna-se difícil”. Ou seja, nas novas tecnologias “sobrestimamos os efeitos positivos a curto prazo e subestimamos os efeitos a longo prazo” (lei de Roy Amara, 2006), o que dificulta a designada “inovação responsável”. Nalguns casos, a ética e a regulação conseguiram um controlo, noutros casos há efeitos do passado que são, no presente, crises reveladas: as alterações climáticas e os efeitos das tecnologias do petróleo, dos plásticos e dos carros nas cidades. Mas, nesta época de transições, pretende-se emendar os males de tecnologias antigas e incrementar as novas, como as biotecnologias, a nanotecnologia, o digital e a inteligência artificial, entre outras. O risco poderá agora estar na essência da própria Humanidade. Se a revolução industrial fez perder a “mão humana”, a nova revolução pode fazer desconsiderar a mente, a sensibilidade, a inteligência e outras prerrogativas humanas. Entre tecnofilia e tecnofobia há que saber desenvolver a tecnoprudência.

 As novas tecnologias impulsionaram movimentos revolucionários, entre o libertarismo (uma herança “hippie” com rejeição de autoridade e de intermediários), a economia verde descentralizada ou um radicalismo neoliberal de direita. Impulsionaram o voluntarismo da OCDE no imperativo da “nova” inovação para o crescimento (relatório de 2015) e que, em 2021, empolga (por vezes com uma candura desarmante) dirigentes e políticos da União Europeia. Mas será que a economia comprova esse desiderato? Recorremos a estatísticas e análises e encontramos uma síntese actual da influência da tecnologia na economia mundial (P. Artus e M.P. Virard, “La Derniére Chance du Capitalisme”, 2021). Três conclusões nos países ricos ocidentais:1) ineficácia crescente do desenvolvimento tecnológico (aumento das despesas e do poder dos monopólios);2) obsolescência do capital pela aceleração da mudança que desencoraja o investimento; e 3) concentração de riqueza e aumento de desigualdades com estagnação de rendimentos da classe média que não acompanham a produtividade prometida.

 As preocupações não devem incidir só nos produtos técnicos, mas também nas restantes dimensões interligadas que moldam permanentemente a sociedade. A tecnologia não é só uma palavra, nem só um conceito ou processo, é também uma ideologia, com muitas palavras, que marca a nossa época. Será que as palavras ganham sempre?

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