Canários, minas de carvão e alerta vermelho

Quando uma espécie se extingue, perde-se mais do que o resultado de milhões de anos de evolução: cessa o papel que desempenhava no sistema através das ligações que mantinha.

Em 1911 os operários das minas de carvão no Reino Unido passaram a entrar nas galerias com uma nova companhia: um canário numa pequena gaiola. A ideia havia sido proposta pelo fisiologista John S. Haldane para uma detecção precoce do inodoro, incolor e letal monóxido de carbono que se libertava em explosão. A ave actuava como indicador da qualidade do ar e quando dava sinais de debilidade, os mineiros sabiam o que deviam fazer. E depressa…

Por que propôs Haldane que se utilizasse uma ave? Porque sabia que a respiração nas aves permite uma ventilação constante dos pulmões graças a um sistema complexo com sacos aéreos sequencialmente insuflados e vazados como se de foles se tratassem. Este processo permite que os pulmões recebam um fluxo contínuo de ar e uma dose dupla de oxigénio em cada ciclo – uma durante a inalação e outra na exalação –, o que aumenta a eficiência das trocas gasosas. Se o ar inspirado pelo canário contivesse gases tóxicos… os mineiros teriam um sinal do perigo iminente, pois a ave ficaria prostrada antes dos seus portadores.

O uso de canários como atalaias do monóxido de carbono durou até finais de 1986 nas minas britânicas, ano em que as aves foram substituídas por detectores electrónicos. A imagem do “canário numa mina de carvão” permanece como um esquiço do mundo mineiro de outrora, mas é sobretudo – e este é o meu ponto de partida – mais um exemplo do valor das aves como indicadores.

Leitores com várias décadas de vida lembrar-se-ão que outrora as paisagens sonoras no mundo rural eram mais melodiosas do que as de hoje. Havia mais aves (lato sensu) e os coros matinais nas florestas e campos agrícolas eram mais ricos e diversificados do que os actuais. Impõe-se prudência por se tratar de uma generalização, mas os resultados dos programas de monitorização de aves por toda a Europa são factuais: os campos do continente têm hoje menos aves do que há quatro décadas.

Um sofista dirá ser normal que a paisagem rural europeia albergue menos aves do que há tempos, porque a superfície ocupada por campos agrícolas e florestas autóctones é hoje menor graças à urbanização crescente, à fragmentação da paisagem criada por rodovias, ferrovias, redes de energia e muito desleixo. Mas este argumento omite o essencial: o relevo da biodiversidade na integridade dos sistemas biológicos.

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Tendência da população nidificante de andorinha-das-chaminés em Portugal Continental no período 2004-20: declínio moderado Fonte: Relatório do Censo de Aves Comuns 2004-2020/SPEA

A biodiversidade – ou seja, a variabilidade de vida na Terra – não é só um conceito: é o seguro de vida da nossa existência. Resulta de processos evolutivos que criam coesão nos sistemas biológicos e é responsável por serviços de regulação dos ecossistemas. Tentarei simplificar: a biodiversidade de um ecossistema é, na sua forma mais intuitiva, o total de espécies que nele se encontram. E cada espécie – seja um microrganismo do solo, planta ou animal – cumpre um papel na autêntica filigrana que constitui cada ecossistema. Logo, quando nele provocamos alterações radicais ou contínuas, quebramos ligações que asseguram a coesão do conjunto. Nas florestas, nos estuários, nos oceanos, etc.

Todos os sistemas naturais têm uma certa resiliência. Faz parte da sofisticação da natureza. É ela que permite o retorno à situação anterior após uma perturbação, embora perdure uma cicatriz. Mas a resiliência tem os seus limites e em muitos casos as feridas são já insustentáveis provocando a ruptura dos sistemas. E os sinais mais visíveis destas chagas são a extinção de espécies – ao nível local ou global –, o aumento dos efectivos de espécies oportunistas com potencial para se tornarem pragas e o aparecimento de novas doenças.

Quando uma espécie se extingue, perde-se mais do que o resultado de milhões de anos de evolução: cessa o papel que desempenhava no sistema através das ligações que mantinha. Seguindo a analogia com a técnica de ourivesaria, o desaparecimento de uma espécie fará com que a filigrana perca alguns dos fios e esferas que dão forma à sua estrutura; e se forem várias espécies a desaparecerem, a dimensão do desastre poderá ser avassaladora.

Regresso às aves e ao seu valor como indicadores do que está a acontecer no ambiente. Por serem facilmente detectáveis, ocorrerem em todos os lugares e poderem reagir quase de imediato a alterações nos habitats, estes animais são modelos privilegiados para nos darem sinais atempados sobre perturbações ambientais – como os canários nas minas de carvão! Graças à ciência, sabemos que a perda de aves comuns dos campos da Europa se deveu (e deve) a práticas que promovem a uniformização da paisagem, através da eliminação de sebes naturais, matas ripícolas e pequenos bosques. Mas sabemos também que, quando recuperamos a paisagem criando um mosaico que inclua aqueles elementos, a biodiversidade aumenta e o sistema recupera algumas das suas funções.

E serão estas reabilitações benéficas, por exemplo, para a agricultura? A ciência diz-nos que a resposta é positiva. Há casos em que o incremento da biodiversidade promove um controlo biológico das populações de insectos com potencial de praga, beneficiando o sistema, evitando o uso de pesticidas e reduzindo custos.

Os anos que vivemos são decisivos para o nosso futuro. À perda de biodiversidade acrescem as alterações climáticas, ambas causadas pela acção humana e agudizadas nas últimas décadas. Suster o declínio da biodiversidade é imperioso para podermos garantir os sistemas de suporte de vida do planeta e o nosso bem-estar. E é também imperativo actuarmos resolutamente perante a crise climática. Reabilitarmos ecossistemas, refrearmos a poluição e protegermos a natureza são desígnios que devemos perseguir. Como? Diminuir consumos, participar como voluntários em programas de monitorização ambiental e ampliar o nosso conhecimento sobre estes assuntos são exemplos de contributos valorosos e valiosos. Hoje conhecemos os problemas e começamos a saber onde a inércia nos poderá conduzir. Mas o quadro apocalíptico não é, necessariamente, o nosso destino comum. Há neste mundo estimulantes exemplos que mostram ser possível evitar o cenário que ninguém deseja. São acções bem-sucedidas de reabilitação de ecossistemas num contexto de desenvolvimento sustentável que devem ser divulgadas como faróis de esperança.

O alerta vermelho foi dado. Agora é com todos nós.

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