Pato Donald e o problema da Bíblia

No século I depois de Cristo, um homem mandar os maridos amarem as suas esposas como a deus era tão ridículo como no século XXI é achar que o homem é a cabeça da mulher ou estimar uma vida humana em gramas de prata.

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Rui Gaudencio

O antepenúltimo motivo de indignação das redes sociais em Portugal parece ter sido uma leitura da eucaristia. A primeira parte desta frase não surpreende ninguém: as redes sociais são versões modernas da personagem do Pato Donald, oscilando entre a euforia com a série Pôr do Sol e a fúria extrema com, bem, neste caso com a missa.

A fúria, que chegou aos jornais e televisão, foi causada pela emissão da missa de 22 de Agosto, em que foi lida uma passagem da Epístola de São Paulo aos Efésios: “As mulheres obedeçam aos seus maridos como ao Senhor. Pois assim como Cristo é cabeça para a igreja, também o marido o é para a mulher. Cristo é o salvador do corpo, que é a igreja. Ora, assim como a igreja obedece a Cristo, também as mulheres devem obedecer em tudo aos seus maridos. Os maridos devem amar as suas mulheres como também Cristo amou a igreja e deu a sua vida por ela.” (Efésios, 5: 22-25)

A controvérsia centra-se na sugestão de São Paulo de que a mulher deverá ser submissa ao homem, uma ideia que hoje no mínimo é anacrónica no Ocidente. Todavia, tendo em conta que o Antigo Testamento estipula que a vida da mulher vale metade da de um homem (500 gramas de prata pela vida de um homem adulto e 300 gramas de prata para uma mulher adulta — ou seja, 320 euros para o primeiro e 192 euros para segunda, à cotação actual da prata) e que as mulheres adúlteras deviam ser apedrejadas até à morte, podemos considerar que, para a época, Paulo até era bastante simpático com as mulheres, se bem que não propriamente feminista, como se chegou a aventar.

Aliás, a Bíblia está repleta de passagens chocantes para a sensibilidade moderna, como a parte de uma prostituta ser esquartejada para salvar a pele a um cobrador de impostos, ou de o Rei David enviar um dos seus melhores soldados numa missão suicida para poder dormir com a mulher dele, pelo que a sua interpretação hoje só pode ser no mínimo metafórica e enquanto obra literária.

E essa interpretação é inevitável, pois a Bíblia constitui a referência literária do Cristianismo, que por sua vez é a base da cultura ocidental e dos seus valores de dignidade humana, liberdade individual, solidariedade social, crença num sentido para a vida e até valorização das mulheres, o que é explícito na passagem da polémica: no século I depois de Cristo, um homem mandar os maridos amarem as suas esposas como a deus era tão ridículo como no século XXI é achar que o homem é a cabeça da mulher ou estimar uma vida humana em gramas de prata.

Mais curioso é esta polémica levantar-se em torno desta precisa epístola, na qual São Paulo se esforça por dar os princípios de uma nova sociedade cristã, contra a sociedade romana pagã que pretendia exterminar, como veio efectivamente a acontecer.

Na mesma posição de São Paulo se colocam hoje redes sociais, jornais e televisões, ao discutir o que deve ser revisto, esquecido, apagado, conservado, no que parece ser o início de uma nova sociedade. E, entre os conselhos que São Paulo dá à nova comunidade cristã que então nascia em Éfeso, aconselha-os a serem verdadeiros, a não se irritarem desnecessariamente, e que “qualquer espécie de ressentimento, ira, irritação, indignação ou injúria deve desaparecer do vosso meio, bem como toda a espécie de maldade.” (Efésios, 4, 31). Uma ideia que talvez ainda valha a pena discutir nas redes sociais.

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