Alterações climáticas: até aqui, tudo bem

A mudança não pode esperar e, como diz Shoshana Zuboff, “está na hora de acordarmos para o nosso futuro partilhado”.

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Lago Oruru, na Bolívia, afectado pelas alterações climáticas David Mercado

Certo dia, um homem resolve atirar-se de um arranha-céus. À medida que vai caindo e passando pelos sucessivos andares, repete para si mesmo, para se tranquilizar: “Até aqui tudo bem… Até aqui tudo bem… Até aqui tudo bem...” Mas o mais importante não é a queda, é como se aterra.

É com o ecoar desta parábola que começa - e termina - o filme La Haine, conhecido em Portugal pelo título O Ódio. Realizado pelo francês Mathieu Kassovitz e estreado em 1995, propõe-se a pintar o retrato, mais actual do que seria desejado, de uma sociedade em queda livre, na iminência do colapso, mas que prefere adiar o confronto com a realidade e procurar refúgio em pequenas almofadas de conforto e em tranquilizantes com efeitos pouco duradouros.

Os glaciares do nosso planeta derretem a uma velocidade sem precedentes, o relatório para o clima rubricado pela ONU avisa para a irreversibilidade de um aumento de 1,5°C da temperatura global até 2040 e, no passado dia 5 de Julho, registaram-se uns infernais 34,3ºC de temperatura na povoação norueguesa de Banak, em pleno Círculo Polar Árctico.

Mas até aqui tudo bem.

Pouco tempo depois, a forte precipitação registada na Europa Central e no Reino Unido desencadeou as trágicas cheias que provocaram dezenas de vítimas mortais, desalojados e avultados prejuízos materiais.

Mas até aqui tudo bem.

Mais recentemente ainda, uma vaga de incêndios de grandes dimensões assolou a América do Norte e o Sul da Europa, invadindo telejornais com imagens de cenários dantescos, provenientes principalmente de Itália, Grécia, Turquia, Estados Unidos e Canadá.

Mas até aqui tudo bem.

As alterações climáticas são, inegavelmente, a maior ameaça existencial com a qual a humanidade se confronta e, à semelhança de qualquer disrupção inscrita na História, serão também uma expressiva ameaça à justiça social pela forma como afectarão, em primeiro lugar e com maior magnitude, quem estiver aprisionado numa situação socioeconómica menos favorável. Se, ao longo das últimas décadas, um leque alargado de cientistas, investigadores e também activistas tem feito soar sinais de alarme perante a evolução das condições de vida na Terra, vamos agora recebendo a confirmação de que as profecias anunciadas não eram hiperbolizadas.

Pese embora se tenha vindo a registar um esforço de consciencialização de consumidores e de adopção de comportamentos mais amigos do ambiente, problemas globais exigem a criação de sinergias e a procura de respostas também à escala global e à imagem da avassaladora dimensão dos desafios que se colocam. Por isso, mais do que apelar à ética no consumo individual, exige-se o compromisso e responsabilização das entidades que maior poder têm para inverter a tendência de acelerada degradação das condições de vida no nosso planeta. Por exemplo, a substituição do modelo vigente de economia linear - assente numa sequência de extracção, produção, utilização e descarte - por um modelo de economia circular alicerçado na reutilização e reciclagem deverá transcender em larga escala as fronteiras dos agregados familiares e tornar-se prática corrente a nível internacional. Para tal, será imprescindível desafiar frontalmente todas as lógicas de mercado que assentem na procura desenfreada do lucro e sua maximização sem racionamento na utilização de recursos nem consideração pelos impactes negativos que cada actividade terá no ambiente envolvente.

Focando a objectiva no sector industrial, torna-se determinante que possa haver, por um lado, mão pesada perante os prevaricadores e, por outro, incentivos a mudanças de paradigma, promovendo-se a implementação de projectos comprometidos com a sustentabilidade, dando-lhes condições para se materializarem, ao mesmo tempo que se neguem investimentos públicos aos que acarretarem prejuízos ambientais, e agravando-se impostos e coimas para quem não cumpra normas em vigor ou metas definidas, designadamente no que diz respeito à descarbonização. Contudo, em qualquer cenário, exige-se que sejam dadas garantias de salvaguarda de postos de trabalho, de modo a que não sejam os trabalhadores a pagar a factura, e garantindo-se a sua adequada formação em caso de necessidade de uma empresa rever a sua forma de actuação.

Na equação do combate às alterações climáticas não poderão também ser deixadas de lado as grandes artérias que confluem para os grandes centros urbanos de maior densidade populacional e que constituem notórios focos de poluição, desde logo ligada ao intenso tráfego que nelas se faz diariamente sentir. O futuro só poderá passar pela aposta nos transportes colectivos, preferencialmente não dependentes de combustíveis fósseis, com robustecimento da rede de transportes públicos, nomeadamente ferroviários, que se querem geograficamente abrangentes e economicamente acessíveis. Paralelamente, será desejável que as cidades - e não só as das grandes metrópoles - ofereçam progressivamente maior harmonia às alternativas de mobilidade suave, permitindo deslocações em condições de segurança e conforto também para peões e condutores de velocípedes.

Por outro lado, no que às actividades do sector primário diz respeito, chegou a altura de universalizar a aposta na agricultura hipocarbónica, que será idealmente aliada ao impulsionamento do desenvolvimento tecnológico aplicável a esta área bem como à generalização da aposta na agricultura de precisão, como forma de seleccionar locais de exploração mais rentável, minimizando igualmente o desgaste e contaminação dos solos e melhorando a gestão de resíduos e efluentes. Neste sentido, deverão ser dadas aos agricultores condições que possibilitem uma transição para este modelo de produção, complementadas com incentivos aos consumidores para a aquisição dos produtos resultantes, eventualmente pela redução do valor do IVA que lhes for associado.

Por último, mas nem por sombras menos essencial, será indispensável dar continuidade aos pergaminhos que Portugal tem vindo a apresentar em matéria de valorização das fontes de energia renovável na produção de electricidade, complementada através da produção de hidrogénio verde, sem nunca deixar de lado a requalificação de edifícios, principalmente destinados a habitação, de modo a que se tornem mais eficiente do ponto de vista energético, reduzindo-se desperdício e garantindo aos seus moradores condições de maior comodidade.

Até aqui está tudo bem. Mas se não forem intensificados esforços, se as metas de descarbonização não forem antecipadas, se a substituição das fontes fósseis por renováveis não for acelerada ou se as relações de produção e consumo não forem profundamente revistas, a aterragem será dolorosa e chegará mais cedo que o desejado. A mudança não pode esperar e, como diz Shoshana Zuboff, “está na hora de acordarmos para o nosso futuro partilhado”.

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