Jogadores aos pontapés

O mundo do futebol tem características dificilmente encontráveis noutros sectores de actividade. Começa agora um novo ano de esperanças e frustrações, inúmeros jovens rumando aos relvados a espera de caber no buraco da agulha.

Agosto avança e vão-se acabando as férias. O futebol é dos primeiros a regressar, a bola já rola, recomeça o jogo do pontapé. O público também está de regresso - nada que fosse notícia antes da invasão do novo coronavírus. O público, pois. O que lá vai e o que fica em casa a ver aqueles debates com adeptos dos três grandes em estado de exaltação, o que vê incansavelmente jogos, desde os milionários da liga dos campeões aos do canal 11, que transmite em directo o futebol de trazer por casa da série infinda de clubes que terminam em “ense” e povoam campeonatos e campeonatinhos. Vão lá os tempos em que a terriola apostava no brio da sua capela e no tamanho da procissão: hoje mede-se a sua pujança pelo campo de futebol e pelo protagonismo micro-local dos seus dirigentes. O Portugal profundo está ao virar da esquina e o futebolês é um dos seus pilares.

O mundo do futebol tem características dificilmente encontráveis noutros sectores de actividade. Quem lá anda bem o sabe, pois a frase “o futebol é um mundo à parte” circula como verdade num mundo em que tudo o resto o é hoje mas não necessariamente amanhã. Numa mesma instituição a diferença salarial entre o melhor e o mais mal pago dos jogadores pode ser de um para vinte ou trinta, apesar de as funções serem as mesmas; nos clubes de campeonatos abaixo dos dois primeiros níveis pode mesmo ser incomensurável, dado que alguns ganham… zero.

Se alargarmos a escala de análise, a assimetria mantém-se: por estes dias jogou o Paços de Ferreira com os londrinos do Tottenham. Ora, estes têm um valor de mercado do plantel 33 vezes superior ao do Paços. Mas, claro, a bola é redonda e estão onze de cada lado – curioso exemplo de como um facto pode ser simultaneamente uma falácia. No nosso campeonato mais cotado, F.C. Porto, Sporting, Braga e Benfica têm mais de 70% da valia de mercado dos planteis, deixando cerca de 28% para os outros 14 clubes. Mas, claro, de cada vez que o árbitro apitar são 11 contra 11 e a bola, já sabemos, é redonda. O povo do futebol exultará com os êxitos da sua equipa, indiferente ao modo de produção de um espectáculo cuja verdade desportiva está distorcida pelas mais brutais desigualdades.

Outra  peculiaridade é a da quantidade de cargos: directores, subdirectores, team managers, responsáveis disto e daquilo – e isto com factor multiplicativo, dado que os há para cada escalão de formação, gerindo crianças desde os dez anos até aos seniores. Dir-se-ia que os clubes reproduzem ad nauseum a lógica de certas instituições do Estado que semeiam chefes de sete em sete funcionários - um país de muitos chefes mas de poucos líderes, escreveu uma vez Alberto Pimenta. Ou uma branca de neve por cada sete anões, escrevo eu.

Este carrossel de personagens deve ser completado com a figura do agente de jogadores, vulgo empresário. Abriríamos aqui um capítulo que não pode resumir-se em três linhas. Aproveitemo-las para dizer que é necessário analisar esta figura em toda a sua magnitude exemplificativa, pois talvez nenhuma outra encarne melhor o capitalismo pato-bravo que anda à caça de mão-de-obra – pé-de-obra, no caso -, em boa parte trazida da América do Sul e de África só na base das promessas para que, no meio da floresta, algum se destaque no relvado e traga consigo a fortuna. É em busca dela que tantos correm, desde os miúdos não raro empurrados por pais encandeados pelo farol do êxito até aos agentes e dirigentes.

Buscam-se produtos finais que sejam jóias polidas e raras. Têm nomes como Ronaldo, Messi, Neymar. Daí para baixo há uma cascata de níveis, cujo efeito na base é o de alimentar o sonho de alguma vez chegar ao topo. Como, em geral, os envolvidos no futebol perdem pouco tempo com a teoria das probabilidades, mantém-se a actividade frenética da miríade de clubes terminados em “ense” alimentando sonhos de glória e ajudando a que, em Portugal, desporto rime com futebol. Seria precisa para este sector a mesma racionalização que teve de se operar no tecido empresarial há quase quarenta anos, quando tivemos de nos modernizar para estar à altura dos nossos novos parceiros da União Europeia.

Os futebolistas que atingem os patamares cimeiros são a ponta do iceberg. Mas a sua omnipresença na narrativa mediática convence o adepto de sofá  - e mesmo muitos praticantes antes do choque da realidade que quase inexoravelmente chegará - de que eles são o mundo do futebol, produzindo assim outra das suas peculiaridades: talvez não haja outro sector em que se cave tal distância entre as representações sociais do fenómeno e a micro-realidade das centenas de clubes e dos milhares de aspirantes a craques. Há jogadores aos pontapés - quais garimpeiros, vão atrás da pepita esfalfando-se anos a fio nos relvados dos campos por aí fora.

Começa agora um novo ano de esperanças e frustrações, inúmeros jovens rumando aos relvados a espera de caber no buraco da agulha. Muitos deles acabam empurrados de clube em clube sem serem tidos nem achados. Enquanto isto as notícias vão-nos entretendo com os milhões das transferências e com as declarações dos treinadores a prepararem os embates de gigantes das competições europeias. “Nocombóio” de alta velocidade do futebol os feitos e os heróis sucedem-se. Quem se lembra já de Luís Filipe Vieira?

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