Pandemia. Um Outono diferente?

A realidade foi dura: cerca de 1.400.000 mortes, certamente nem todas só pela infecção, algumas de portadores de outras doenças graves onde o SARS-Cov-2 perturbou o equilíbrio vital precário da sua existência. Bem diferente no Extremo-Oriente e Australásia

Não desperdices lágrimas frescas em dores passadas. 

Euripides

Agosto, 2021: Verão quente, próprio do Algarve cujo encanto é o equilíbrio de contrários. O vento do Sul com o calor, a poeira sahariana e as águas quentes do Mediterrâneo e, depois, a brisa atlântica que limpa o ar e traz de volta o azul único do céu algarvio. Será que esta sucessão de contrários se aplicará ao nosso tempo pandémico? Vejamos algumas questões:

1. Há 1 ano, o Verão foi de expectativa e de esperança. Terminara o confinamento, o martelo, como Thomas Pueyo, autor de The Hammer and the Dance, designou então como a estratégia de contenção, aplanara a curva do aumento exponencial de infectados. O sobressalto do Outono e depois a situação trágica do inicio deste ano 2021 pareciam improváveis, não obstante avisos à navegação. O mesmo autor fez recentemente uma análise crítica do ano que passou que mostra que o conjunto Europa e EUA quase controlaram a progressão da pandemia até Setembro, mas a partir do Outono tudo se complicou.

A realidade foi dura: cerca de 1.400.000 mortes, certamente nem todas só pela infecção, algumas de portadores de outras doenças graves onde o SARS-Cov-2 perturbou o equilíbrio vital precário da sua existência. Bem diferente no Extremo-Oriente e Australásia, onde os dados mencionados no gráfico traduzem outro mundo. Nos EUA 735 000 mortes relacionadas com o COVID 19, mais que as cerca de 660 000 de todas as guerras travadas pelos norte-americanos desde 2ª guerra mundial, incluída, são mencionadas no artigo. Como entre nós, onde a mortalidade associada à pandemia ultrapassou, num ano, a causada por 13 anos de Guerra em África como o Vice-Almirante Gouveia e Melo bem acentuou.

O que falhou então no mundo ocidental? Resumidamente:

i) descoordenação nas políticas de confinamento e abertura da sociedade ii) insuficiência nas politicas de testagem, identificação e isolamento dos portadores (test/trace/isolate) iii) descoordenação europeia na abertura das fronteiras, facilitando difusão de novas variantes do vírus iv) comunicação pública inadequada e informação contraditória causando perplexidade - do uso de máscaras ao distanciamento pessoal, das autorizações de ajuntamentos e manifestações e encerramento de actividades frequentemente conduzindo ao resultado oposto que se pretendia v) ausência de políticas de transportes públicos que continuaram insuficientes e mal programados.

2. Valerá a pena revisitar o Passado? Certamente. Não para verter lágrimas inúteis como sugeria Euripides, mas para que não se repitam erros. É, também, um dever irrecusável da Responsabilidade Pública e da Cidadania exigente e empenhada. Entre nós as discrepâncias entre o Ministério da Saúde, o sistema de saúde e o tecido científico nacional, foi o erro principal.

Como a não criação, desde o início da pandemia, de uma Aliança para o COVID19 com liderança independente, de currículo indiscutível, capaz de suscitar mobilização de competências e parcerias com o sistema público, num esforço coordenado e inteligente. E, também, para a avaliação e monitorização rigorosa da evolução da situação com actualização permanente das normas de intervenção acompanhando o desenvolvimento do conhecimento e promovendo a sua generalização a todo o País. Certamente preferível e mais útil que o relato diário de ocorrências em inenarráveis conferências de imprensa que só confundiam, assustavam e dificultavam perspectiva da situação.

A notícia recente sobre as variações de mortalidade entre as diferentes regiões do país são preocupantes. Há interrogações que requerem resposta: i) foram estabelecidas normas de actuação terapêutica aplicáveis em todo o País ou privilegiaram-se estratégias regionais e autonomias institucionais? ii) as carências conhecidas em recursos humanos e materiais reflectiram-se em eficiências regionais diferentes? iii) subgrupos populacionais com mais co-morbilidades predominavam em algumas regiões? A sua clarificação é imprescindível para que os portugueses saibam e confiem que, independentemente do seu local de residência, terão sempre acesso ao state of the art para os tratamentos necessários.

Como cirurgião vascular, pertenço a uma área de intervenção de retaguarda e embora já jubilado na minha carreira pública, conheço a actividade das Unidades de Cuidados Intensivos e de suporte cardio-circulatório, cujo trabalho foi excepcional.

Em artigo publicado em Fevereiro de 2021 invoquei a necessidade de monitorização e avaliação permanentes e clamei que o tempo da responsabilidade pública chegaria. Não estou só neste apelo.

Sobre o modelo de diálogo entre a ciência e o poder político consubstanciado nas reuniões do Infarmed, já muito se escreveu: faltou mediação efectiva que proporcionasse síntese das diferentes contribuições científicas, para poder habilitar os políticos a tomar as decisões necessárias. E também não estou isolado nesta crítica.

Thomas Pueyo no artigo que citei finaliza-o com duas interrogações: Do you think they (as autoridades) will look back at their mistakes? They won’t. The responsibility is on us. We must keep them accountable. A isto, chama-se Responsabilidade Pública e Dever de Cidadania e é um pilar da Democracia.

Onde esteve a Política ao longo deste ano de sofrimento para esse exercício de accountability, de escrutínio politico das decisões tomadas e propondo soluções alternativas? Não é essa a essência da Democracia? Despolitização do discurso politico sobre a pandemia como omissão deliberada e consequência do cerceamento de liberdades? Será mesmo isso? Ou, pelo contrário, impreparação, comodismo, acomodação ao autoritarismo e à propaganda, uma idiossincrasia bem nacional.

3. Vencer a Pandemia ou aprender a conviver com o SARS-Cov-2? Uma nova realidade modulou, na boa direcção, as inquietações deste Verão. O Programa de Vacinação tem sido um sucesso e alterou o paradigma de enquadramento das políticas face á pandemia. A colaboração das Forças Armadas foi indispensável para vencer o ensimesmamento e auto-suficiência do Poder na Saúde, e cujo balanço rigoroso está ainda por fazer. Alguma vez haverá coragem e espaço para esse exercício? Duvido.

A actuação do líder da task force Vice-Almirante Gouveia e Melo traduziu o melhor da Cultura das Profissões tantas vezes hostilizadas e afectadas na sua independência, espírito de serviço, e capacidade de acção competente. Permita-me também, caro leitor, referência especial à acção continuada e isenta da Ordem dos Médicos, do seu Bastonário, da sua direcção e dos seus comités científicos na defesa dos doentes e dos profissionais de Saúde, isoladamente e em cooperação com a Ordem dos Enfermeiros e dos Farmacêuticos.

A vacinação fez toda a diferença e esse foi realmente o grande passo dado no combate à pandemia.

Sabemos, as suas vantagens: i) protecção dos cidadãos com redução da mortalidade e das formas mais graves da doença ii) redução da circulação do vírus na comunidade menorizando o risco de novas variantes iii) diminuição da sobrecarga sobre os serviços de Saúde impedindo o seu colapso.

A durabilidade da protecção vacinal é importante? Explicaram-nos, e bem, como os dois sistemas de defesa imunitária, a humoral e a celular, actuam em complementaridade, sendo a memória celular mais duradoura e capaz de prevenir formas graves da doença, menor hospitalização e redução da mortalidade. Mesmo contra as novas variantes como a delta, o efeito protector das vacinas para a redução da mortalidade e morbilidade é significativo.

Continuarão a haver infecções? Altamente provável, mas menos graves e talvez sem as necessidades de lockdown da actividade e da Economia. Mas precisamos de não descontinuar abruptamente as medidas preventivas!

Como clínico, não posso deixar de reconhecer duas coisas. A primeira, é que uma intervenção profiláctica com 80 a 90% na redução de mortalidade e ocorrência de complicações graves aos seis meses após a inoculação da vacina e na ausência de uma terapêutica etiológica – isto é, dirigida à causa da doença – e com um número reduzidíssimo de efeitos adversos, é seguramente uma mais-valia muito significativa.

Mais que a erradicação da doença, será porventura necessário aprender a viver com ela, recorrendo a revacinação como acontece na gripe e prevenindo as situações potenciadoras de alta probabilidade de contaminação.

4. Que objectivos para a Vacinação? Podemos tranquilizar-nos com as elevadas percentagens conseguidas de vacinados? A doença COVID 19 é um problema global. Novas variantes provenientes das grandes bolsas de não-vacinados, verdadeiro reservatório de vírus e de novas mutações, são verdadeiras armas apontadas ao nosso ainda frágil equilíbrio. Se o problema do COVID 19 é global, então só poderemos falar de imunidade de grupo se for global e para toda a população mundial.

Nenhum país e nenhuma sociedade serão, no tempo actual, ilhas isoladas de sucesso e prosperidade. No one is an island, como no poema de John Donne que Hemingway usa como inspiração no livro Por Quem os Sinos Dobram. E esse é o grande desafio, que requer Política inteligente, determinada e coordenada internacionalmente. Providenciar vacinas em quantidade suficiente para a Humanidade e não apenas para os países desenvolvidos que as podem financiar e comprar, e produzir novas e melhores vacinas adaptáveis às novas variantes, que a ciência e tecnologia providenciarão. É um desafio à indústria farmacêutica, à sua capacidade de inovação e ao sentido moral e ético de responsabilidade pública.

Líderes mundiais, do Papa, ao secretário-geral das Nações Unidas, a líderes nacionais têm alertado para essa necessidade. É o nosso desafio também de responsabilidade pessoal e pública, de bem fazer e dever de cidadania empenhada, interventiva e exigente.

Um Outono e Inverno diferentes de 2020? Sim, se não insistirmos nos mesmos erros...

In memoriam

Ao escrever estas linhas recordei com amizade e saudade o Dr. João Gomes Esteves, grande figura da Indústria Farmacêutica, nacional e internacional, infelizmente desaparecido precocemente. Esta reflexão beneficiou da sua experiência, sabedoria e da sua dimensão ética e moral que perpassava nas nossas conversas ao longo deste ano de inquietações e que nunca esquecerei.

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