A hipocrisia europeia

Sinais dos tempos a Europa viver hoje demasiadas vezes entre duas linhas políticas que começam de forma diferente, cruzam-se e acabam no mesmo lugar. No caso concreto desta retirada tenebrosa dos EUA no Afeganistão, tanto a esquerda radical como a direita nacionalista e iliberal atiram os direitos humanos e a segurança para o caixote de lixo da história.

Os primeiros que sempre foram contra a ocupação, ignoram a raiz do fundamentalismo islâmico, do poder taliban e o crescimento que daí advirá para as organizações terroristas. Pouco ou nada mudaram desde setembro de 2001 e ficaram presos ao revisionismo histórico que decreta o Ocidente como criador de todos os males. Passam ao lado de um dos aspetos que mais interessa hoje: o facto do povo afegão querer sair em massa do Afeganistão. Do retrocesso civilizacional ao que já é claro: por mais erros, desastrosa até na falta de conhecimento cultural das especificidades do país, às intenções duvidosas e ao significado da ocupação americana e dos aliados após o desmantelamento de algumas células da Al Qaeda, os últimos vinte anos foram sempre melhores em comparação ao que já aí está para o povo afegão. O “hang in there sisters” de Varoufakis, sendo o que é, serve como caricatura perfeita da hipocrisia esquerdista aqui.

Do outro lado, a tal direita nacionalista, do America First ao Europe First, países fechados, pouco intervencionistas e da preocupação económica em exclusivo. Da Hungria, Polónia a outros como a Holanda que se demonstram impressionados com as consequências no Afeganistão, advindas, precisamente, deste modelo que defendem. E já começam a torcer o nariz quando se aborda o tema dos refugiados em sua casa, ignorando o efeito futuro desta ideologia Ocidental no mundo e entre portas.

É perante isto que o centro político perde força e cai na Europa?

Não é de hoje que os grupos extremistas ou outros terroristas olham para a democracia liberal como um modelo a abater e que põe em causa os fundamentos do seu próprio poder. Também não será o facto de o fazerem das mais variadas formas em muitos locais por esse mundo fora, mesmo contra a vontade dos seus povos. Chegará novamente o momento da ameaça em força dos atentados nos EUA e países da União Europeia.   

Muito provavelmente, os americanos não conseguirão retirar de Cabul todos os seus militares, pessoal e colaboradores afegãos dos últimos vintes anos até ao dia 31 de agosto. Deixar qualquer um destes grupos é uma tragédia que a opinião pública americana não deixará esquecer. E levando à letra o recente aviso dos taliban, a permanência de militares americanos para lá dessa data é correr o risco de reacender todo um novo confronto que pode voltar a exigir mais tropas Ocidentais em terreno afegão. Aquilo que ninguém deseja.

Entretanto, seja qual for o desenlace, pode-se esperar que a União Europeia reforce os seus comunicados de preocupação e os seus líderes lamentem publicamente a impensável (!) condução unilateral da NATO por parte dos EUA. Dá jeito ignorar que a Administração americana até agradeceria o contrário.

A paz e não só têm um preço na geopolítica. A hipocrisia também.

É por isso que hoje já não se deve colocar a célebre questão do Kissinger sobre a quem ligar quando queria falar com a Europa. Deve-se, sim, refletir no facto de já não se lembrarem sequer em pegar no telefone para falar com um dos presidentes da União Europeia.

Na verdade, de que serviria?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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