Sei o que fizeste no Verão passado

Quando assinalamos mais um Dia Internacional do Animal Abandonado, dizem-nos os dados que cerca de 30 mil animais de companhia dão entrada anualmente em centros oficiais de recolha em Portugal. Destes, apenas 35% voltam a ser acolhidos por famílias.

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Rui Gaudencio

Todos os anos esta sequela repete-se relativamente ao abandono de animais de companhia. Apesar de cada vez mais fazerem parte das famílias e da crescente sensibilidade quanto à forma como devem ser tratados, há ainda um longo caminho a fazer para combater o abandono e outras formas de maus tratos e evoluir enquanto sociedade no sentido de sermos dotados de um maior respeito e empatia para com aqueles a quem chamamos “melhores amigos”, mas a quem não temos sabido retribuir a dedicação que nos devotam.

Quando assinalamos mais um Dia Internacional do Animal Abandonado, dizem-nos os dados que cerca de 30 mil animais de companhia dão entrada anualmente em centros oficiais de recolha em Portugal. Destes, apenas 35% voltam a ser acolhidos por famílias. Estes são números que a todos devem não só inquietar, como mobilizar para que esta deixe de ser uma realidade no nosso país.

Nos últimos anos, vimos avançar as políticas públicas em matéria de bem-estar animal, ainda que não a um ritmo tão veloz quanto gostaríamos, e os números dos maus tratos e abandono dizem-nos isso mesmo. O reconhecimento dos animais como seres vivos dotados de sensibilidade, através de um estatuto jurídico próprio, foi talvez um dos mais importantes marcos históricos, assim como a criminalização dos maus tratos a animais de companhia. No entanto, diariamente ouvimos ou lemos notícias que relatam novos casos de abandono de cães e gatos, um pouco por todo o país. Para quem actua no terreno, não restam muitas dúvidas de que a pandemia por covid-19 veio agravar a situação, dificultando os processos de adopção, a realização das campanhas de esterilização e até devido ao facto de diversos animais terem perdido os seus tutores para este vírus. 

Por seu turno, o Estado e as autarquias não podem continuar a lavar as mãos como Pilatos, em matéria de protecção animal. Desde logo, é essencial assegurar a disponibilização de verbas públicas para prestar o sempre escasso apoio financeiro às imprescindíveis associações de protecção animal, que, muitas vezes, de forma voluntária, dedicam muito do seu tempo a recolher os animais errantes. Até aqui tem faltado uma estratégia para os animais no nosso país, apesar de, pela mão do PAN, no Orçamento do Estado para 2020, ter ficado prevista a sua elaboração, com vista, nomeadamente, ao levantamento de todos os abrigos existentes no país e à criação de uma rede de acolhimento.

Se queremos combater o abandono, para além de o fazermos através da educação, garantindo que as gerações futuras não cometem os mesmos erros, e de acções de sensibilização da população, é também fundamental assegurar a existência de outros apoios socioeconómicos. Apoios estes que passam pela criação de hospitais veterinários públicos, que assegurem o apoio em termos de saúde veterinária aos animais que integram famílias em situação de vulnerabilidade, assim como pela realização de campanhas efectivas de esterilização dos animais de companhia, de modo a evitar o nascimento de mais e mais ninhadas, sem que tenham um lar que as acolha. Importa também reforçar as verbas que anualmente são previstas no Orçamento do Estado e os meios afectos às autarquias, nomeadamente quanto aos médicos veterinários municipais diz respeito, peças fundamentais na promoção das políticas de bem-estar animal.

E o que dizer sobre adopção responsável? Durante o confinamento foram muitos os animais adoptados. Houve também uma maior consciencialização para o papel que estes animais têm no seio familiar. Mas, volvido mais de um ano e meio, a retoma à “suposta normalidade” trouxe também consigo o que de negativo essa normalidade tinha: animais devolvidos às associações ou aos centros de recolha oficial ou, pior ainda, abandonados à sua sorte. Para além de crime, o abandono é um acto cruel. Os valores humanitários não podem ser indiferentes ao sofrimento animal e à responsabilidade que temos quando decidimos receber e adoptar um animal em nossas casas.

Não bastasse a dura realidade do abandono de animais, esta semana ficou ainda marcada por um episódio trágico que, mais uma vez, vem pôr a nu a fragilidade em que os animais se encontram, dada a ausência de respostas eficientes de protecção animal: 14 animais morreram carbonizados na localidade de Santa Rita, como consequência do incêndio de Castro Marim e que alastrou ao concelho vizinho de Vila Real de Santo António. 

O abrigo, bastante precário e pertencente a particulares, estava a escassos metros da população. É desolador pensar a forma agonizante como morreram aqueles animais e mais ainda quando temos a perfeita consciência de que poderiam ter sido salvos. Claro que temos de saber separar o trigo do joio, pois casos como os de Santo Tirso ou de Santa Rita não são representativos do trabalho feito pelas associações e milhares de voluntários no nosso país, muito pelo contrário. Casos como estes são outra realidade, à qual as entidades públicas tinham e têm a obrigação de dar resposta, ao invés de reiteradamente fecharem os olhos ou refugiarem-se na desculpa do “desconhecimento”. Cabe a toda a  sociedade, exigir-lhes isso mesmo, pois sabemos (e não esquecemos) o que fizeram no Verão passado…

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