A paixão pela educação no Ensino Superior

Claro está que o actual sistema de progressão baseado em concursos internacionais não impede, em teoria, a constituição de um júri “simpático” que decida a favor de um candidato interno que se pretenda promover.

1. Noticia a imprensa (PÚBLICO de 24 de Julho de 2021) que o governo pretende eliminar, via revisão dos estatutos de carreira docente, a (óbvia) exigência de um concurso de âmbito internacional para o acesso às categorias intermédia (professor associado) e superior (professor catedrático) da docência universitária. Trata-se do corolário lógico da inovação, de má memória e também deste governo (via decreto de execução orçamental de 2019), dos concursos internos (ou “aconchegados”) que visavam alavancar a qualificação de 50% do corpo docente das nossas universidades restringindo o universo de docentes a promover ao corpo docente interno de cada instituição...

2. Alega o governo que, face às restrições orçamentais das nossas universidades (que não impediram, contudo, a redução do valor das propinas...), a actual exigência de concursos internacionais inibe a abertura de novas vagas para professores associados ou catedráticos, pois as universidades correm o “risco” de ter de suportar o custo salarial do docente interno (promitente promovido, mas perdedor do concurso) e do “intruso” externo (que comete o “pecado” de ganhar o concurso por mérito). Contudo, este argumento enferma de três falácias, a saber: a ideia de que as restrições orçamentais apenas afectam a progressão intercategorias; o pressuposto implícito de que 50% dos docentes internos devem ascender às categorias de professor associado ou catedrático em qualquer universidade; e a não aceitação do princípio de ocupação dos lugares de topo do aparelho de Estado simplesmente pelos mais competentes e capazes.

2.1. Convém lembrar que dentro de cada categoria existem diferentes escalões remuneratórios e que a ascensão entre escalões está actualmente ancorada ao sistema de avaliação de desempenho específico de cada universidade. Por exemplo, o último escalão remuneratório na categoria de Prof. Associado com agregação (€4678,96/mês) é exactamente igual ao 1º escalão remuneratório da categoria imediatamente superior (professor catedrático). Mais ainda, foram exactamente as restrições orçamentais que impediram a normal progressão entre escalões remuneratórios desde os tempos do PEC IV. Lembram-se? Se a preocupação for valorizar o estatuto remuneratório dos docentes universitários, há muito espaço para o fazer ao nível dos escalões remuneratórios (e não das categoria profissionais).

2.2. Pelo contrário, a possibilidade de ascender às categorias de professor associado ou catedrático via concursos internos em nada valoriza o estatuto do docente universitário, na medida em que tais lugares passariam a ser ocupados, não necessariamente pelos melhores (em termos absolutos), mas sim pelos menos maus ou melhores dentro de cada instituição: por exemplo, um docente com um bom currículo, mas de uma universidade com um corpo docente de excelência na qual terá poucas possibilidades de progressão na carreira, ficaria impedido de concorrer para um lugar de associado ou catedrático noutra universidade com um corpo docente menos qualificado... Ora nenhuma lei da física garante que 50% dos actuais docentes internos tem mérito suficiente, em todas as universidades, para ocupar os lugares de professor associado ou catedrático, assim como não é verdade que 50% dos jogadores de basquetebol universitário nos EUA consigam chegar à NBA (na realidade, tal percentagem corresponde a apenas 1%).

2.3. Consequentemente, e para melhor servir os alunos (e, portanto, o Estado português), os lugares de topo da carreira universitária deverão ser ocupados pelos melhores, sejam eles internos ou externos. E para não correr o “risco” de ver o candidato interno a promover perder o concurso internacional, a solução é muito simples: abrir o concurso internacional com requisitos de mérito absoluto verdadeiramente exigentes e apenas quando tal candidato interno os estiver em condições de satisfazer. Se o candidato interno ganhar o concurso, óptimo: é porque o mereceu; caso contrário, também não haverá problema, pois teremos conseguido recrutar um candidato externo excelente. Afinal de contas, seja a vaga aberta na instituição A ou B, será sempre o erário público a suportar tal despesa, pelo que se exige parcimónia e rigor na utilização dos parcos recursos financeiros.

3. Ao invés, a adopção de concursos internos apenas promoverá a tradicional endogamia na maioria das universidades portuguesas. E não vale a pena alegar que tais concursos seriam verdadeiramente competitivos porque teriam sempre mais do que um candidato ou porque teriam requisitos de mérito absoluto assentes no sistema de avaliação de desempenho da instituição em causa. Por um lado, dois candidatos fracos não geram um vencedor forte. Por outro lado, um sistema de avaliação de desempenho que se aplique transversalmente, numa mesma instituição, a áreas científicas tão diferenciadas como, por exemplo, a Matemática ou a Sociologia, nunca poderá produzir critérios de mérito absoluto suficientemente exigentes para todas as áreas.

4. Claro está que o actual sistema de progressão baseado em concursos internacionais não impede, em teoria, a constituição de um júri “simpático” que decida a favor de um candidato interno que se pretenda promover. Mas, se esta é uma preocupação, a solução (já proposta pelo prof. Jorge Bacelar Gouveia no PÚBLICO de 2 de Agosto de 2021) é excelente: fazer o sorteio do júri (a nível nacional), tal como já acontece em Espanha. Não é necessário inventar nada!

5. Em suma, os actuais concursos internacionais permitem a aferição do mérito dos candidatos internos face a concorrentes externos, fomentando a competição das diferentes universidades pelos melhores docentes bem como a mobilidade entre instituições. Em oposição, o modelo esdrúxulo de concursos internos agora proposto poderá premiar a mediocridade e orientar a actividade docente, não à luz dos melhores referenciais de cada área científica, mas em função dos critérios associados ao funcionamento interno de cada instituição. Ora, eu prefiro ser reconhecido pelos pares da minha área científica noutras universidades do que fazer carreira satisfazendo os critérios de progressão definidos pela tutela da minha universidade ao nível do sistema interno de avaliação de desempenho.

6. De qualquer modo, a actual proposta governativa de eliminação da exigência de concursos internacionais é coerente. Depois do facilitismo instaurado no ensino secundário (onde reprovar, perdão, “reter”, um aluno onera o docente com a redacção e implementação de um “plano de recuperação” ou onde os programas são reduzidos a “aprendizagens essenciais”), da desautorização e perda de prestígio dos professores liceais (cada vez mais assoberbados com tarefas de índole administrativa) e do retomar da “formação de formadores” (com 5,5 mil milhões de euros desperdiçados sob a forma de “novas verbas do Fundo Social Europeu”), esta “paixão pela educação” só poderia resultar no desprestígio também da carreira universitária. Era o que mais faltava!

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