Património cultural afegão: e agora?

A evolução política do Afeganistão levanta também questões sobre a protecção de bens culturais no resto do mundo. As atrocidades recentes do Estado Islâmico em Palmira, na Síria, mostram como milénios de história podem desaparecer tão rapidamente, se dependerem da boa vontade dos ocupantes.

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Reuters/MOHAMMAD ISMAIL

São imagens impressionantes: afegãos tentando abraçar os trens de aterragem dos aviões, numa tentativa desesperada de fugir do país antes das mudanças que se aproximam. A velocidade dos acontecimentos dos últimos dias apanharam todos de surpresa, até mesmo os novos ocupantes do palácio presidencial. Ainda por conhecer a forma e a composição do próximo governo talibã, teme-se um regresso ao passado, pelo menos no que diz respeito a direitos fundamentais e à protecção do património cultural.

Vinte anos depois lembram-se os atentados feitos à memória pré-islâmica. Ao saque do Museu Nacional de Cabul soma-se o tráfico de antiguidades para financiar o movimento religioso. Mas o caso mais emblemático foi a destruição dos Budas de Bamiyan, com o objectivo de eliminar um ídolo considerado anti-islâmico. Perante o choque e a impotência da comunidade internacional, as estátuas de Buda, com mais de 50 metros de altura máxima, foram destruídas durante 25 dias, primeiro alvo de disparos de artilharia, que se revelaram ineficazes para desfazer rocha maciça, depois com cargas de dinamite, que finalmente deixaram os nichos da escarpa livres de marcas reconhecíveis das figuras milenares.

Neste último caso, a destruição dos Budas de Bamiyan não reflecte a incúria de um governo: há uma eliminação intencional da memória colectiva, numa tentativa de isolar a herança de uma só religião. Do mesmo modo que a proibição de músicas, filmes, até da televisão, retira distracções numa sociedade mais clerical.

Como se pode imaginar, o Afeganistão tem uma história muito mais vasta, muito mais ancestral do que o século VII d.C. Por lá passaram Dário I da Pérsia, Alexandre o Grande da Macedónia, os impérios Máuria, Cuchana, Timúrida, Mongol ou Mogol. O relevo montanhoso de um país sem mar torna-o difícil de dominar, até mesmo na história recente. Os britânicos finalmente desenharam a Linha Durand, fronteira entre o Afeganistão independente e a Índia Britânica, em 1919, depois de vários dissabores militares. E a presença de tropas da União Soviética teria a oposição de um clima de guerrilha quase constante, até Gorbachev retirar a maioria do contingente militar do país em 1989 - abrindo caminho para a ascensão dos taliban.

Mesmo com uma história conturbada, o património cultural afegão é marcado pela diversidade: do culto do hinduísmo, zoroastrismo, budismo, judaísmo e cristianismo, à herança islâmica, árabe e persa. Foi também no Afeganistão que a arte budista recebeu influências gregas, antes de se expandir para a China, mostrando a relevância da cultura afegã para o resto do mundo. 

Quando os taliban retomam o poder, o que esperar? As opiniões dividem-se. De acordo com declarações recentes do movimento, os bens culturais serão protegidos, proibindo a escavação, o transporte e a venda de antiguidades. Contudo, o director do Museu Nacional de Cabul, Fahim Rahimi, teme a integridade das 800 mil peças que o museu alberga. A evolução política do Afeganistão levanta também questões sobre a protecção de bens culturais no resto do mundo. Pouco mais de 100 países assinaram a Convenção de Haia, para preservação de bens culturais em situações de conflito armado. Mas as atrocidades recentes do Estado Islâmico em Palmira, na Síria, mostram como milénios de história podem desaparecer tão rapidamente, se dependerem da boa vontade dos ocupantes.

Não menos importante é perceber como decisões relacionadas com a identidade cultural irão ajudar a moldar o futuro Afeganistão. Cada vez mais longe da influência americana e dos anos posteriores à última ocupação, há várias potências capazes de dialogar com os taliban. Embora nenhum outro país deseje envolver-se directamente na estabilização do Afeganistão, há interesse em beneficiar dos recursos minerais ou do transporte de energia entre os países vizinhos, entre o Médio e o Extremo Oriente, do Irão à China, entre outros. A História está longe de terminar.

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