Negacionismo da covid-19, terrorismo e bioterrorismo

Neste momento o centro de gravidade da atuação negacionista situa-se no terreno da vacinação. Estando em causa a Saúde Pública e uma atuação deliberada de propagação de doença contagiosa, porque razão é que o Ministério Público não invoca o Crime de Propagação de Doença Contagiosa contemplado no artigo 283.º do CP?

O primeiro registo do uso de microrganismos patogénicos como arma biológica remonta ao século XIV a.C. quando o povo hitita da Anatólia enviou contra os seus inimigos ovelhas infetadas com a bactéria Francisella tularensis, causadora da tularemia. Ao longo dos séculos, a utilização de cadáveres infetados com os vírus Variola m. (varíola) e Flavivirus sp. (febre amarela), e as bactérias Clostridium tetani (tétano), Mycobacterium l. (lepra), Yersinia pestis (peste), Bacillus anthracis (antrax) e Vibrio cholerae (cólera) foi prática corrente na guerra biológica. Todos estes microrganismos, de entre outros, foram classificados pelo Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos da América como agentes de potencial bioterrorista, entendendo-se como bioterrorismo a propagação intencional de microrganismos patogénicos com o objetivo de causar doença ou morte em humanos, animais e plantas. No século XXI, o caso mais conhecido de bioterrorismo teve lugar em 2001 nos EUA protagonizado por um microbiólogo de um laboratório militar, que consistiu no envio por correspondência de esporos de antrax.  

Em 2003, Robert Krug, professor de Biologia Molecular na Universidade do Texas, alertava num artigo na revista Antiviral Research para a possibilidade do vírus Influenza A se tornar apetecível para a prática bioterrorista devido à sua facilidade de transmissão por aerossol, se bem que a superação das dificuldades técnicas para gerar o vírus em laboratório não fosse viável à época. No entanto, com o aparecimento do SARS-CoV-2 e o início da covid-19 alguns negacionistas descobriram o Ovo de Colombo para a disseminação deliberada do vírus. No primeiro trimestre de 2020 negacionistas americanos com ligações aos supremacistas brancos e infetados com o coronavírus foram para estabelecimentos comerciais tossir e cuspir para cima dos utentes, o que levou o Departamento de Justiça a considerar estas ações como terrorismo devido ao vírus “se enquadrar na definição de agente biológico” (CNN 26/3/2020). Também o governo da África do Sul criminalizou com dureza os negacionistas: “any person who intentionally exposes another person to COVID-19 may be prosecuted for an offence, including assault, attempted murder or murder” (Disaster Management Act, 18/3/2020).

Ao longo de 2020/21 assistimos à detenção de vários médicos de movimentos negacionistas acusados de incitamento à violência e terrorismo: o alemão Heiko Schöning, fundador do movimento Doctors for Enlightenment, precursor dos Médicos pela Verdade na Europa, o cardiologista suíco Thomas Binder, o húngaro György Gődény, e a americana Simon Gold, dirigente do America’s Frontline Doctors, pela sua participação na invasão do Capitólio. Em Espanha e Portugal vários médicos dos Médicos pela Verdade foram alvo de sanções disciplinares, sendo o caso mais insólito o de uma médica que divulgou nas redes sociais um procedimento caseiro de auto-medicação para falsear os resultados dos testes PCR de portadores do SARS-CoV-2 (PÚBLICO 23/9/2020), o que permitiria a um infetado propagar o vírus.

Neste momento o centro de gravidade da atuação negacionista situa-se no terreno da vacinação. As imagens chocantes que nos chegaram da vandalização do Centro de Vacinação da Azambuja e do grupo de arruaceiros a insultar o vice-almirante Gouveia de Melo ilustra o upgrade de uma estratégia que extrapolou as fronteiras da desinformação propalada nas redes sociais para se situar no plano da violência terrorista. O apelo às ações violentas contra a campanha de vacinação em curso constitui o mote dos sites negacionistas portugueses, onde é notória a ligação destes grupos à extrema-direita, uma ligação já denunciada no Relatório Anual de Segurança Interna de 2020.

O nosso Estado de Direito tem sido no mínimo moderado na criminalização da atuação negacionista, limitando-se à aplicação de multas e acusações por Crime de Desobediência (CP, artigo 348.º). Estando em causa a Saúde Pública e uma atuação deliberada de propagação de doença contagiosa, porque razão é que o Ministério Público não invoca o Crime de Propagação de Doença Contagiosa contemplado no artigo 283.º do CP: “Quem propagar doença contagiosa….. e criar deste modo perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem é punido com pena de prisão de um a oito anos”? Crime esse que se enquadra na definição de bioterrorismo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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