Os danos colaterais da guerra

Graças a Daniel Hale, descobriu-se, por exemplo, como durante um período de cinco meses, nove em cada dez vítimas de ataques de drones não foram o alvo desejado pelos EUA. Foi agora condenado a quatro anos de prisão.

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Reuters/FINBARR O'REILLY

O ex-analista militar e whistleblower Daniel Hale foi condenado a quatro anos de prisão por denunciar atrocidades bélicas. Haverá justiça em tal castigo?

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O ex-analista militar e whistleblower Daniel Hale foi condenado a quatro anos de prisão por denunciar atrocidades bélicas. Haverá justiça em tal castigo?

Em Fevereiro de 2014, Daniel Hale entregou documentos confidenciais a um jornalista americano, contendo informação sobre procedimentos internos da Força Aérea dos Estados Unidos, onde Hale fizera serviço militar alguns anos antes.

Especificamente, Hale esteve destacado no Afeganistão, ao serviço da Agência de Segurança Nacional. A partir da base aérea de Bagram, foi um dos analistas responsáveis pela intercepção de telecomunicações e subsequente localização de talibans que, após serem identificados, podiam então ser capturados ou (mais frequentemente) eliminados por um drone.

Foi depois de sair da Força Aérea, e já após ter sido contratado por outra subagência do Departamento de Defesa, que o analista militar orquestrou a fuga de informação. Um ano e meio depois, os Drone Papers foram publicados. A série de artigos documenta as múltiplas falências e abusos do programa militar de drones dos Estados Unidos, detalhando como a identificação e eliminação de combatentes inimigos foi conduzida no período entre 2011 e 2013.

Descobriu-se, por exemplo, como durante um período de cinco meses, nove em cada dez vítimas de ataques de drones não foram o alvo desejado. Os mortos não identificados eram posteriormente classificados como combatentes inimigos, de modo a tornar as estatísticas mais opacas, mas muitos eram civis. Num relatório interno de 2013, uma agência do próprio Pentágono lamentava o foco excessivo na eliminação em detrimento da captura de adversários (um dos objectivos principais seria a captura de talibans para interrogação, e os mortos não falam).

As revelações foram bombásticas e muito pouco lisonjeadoras para o governo dos Estados Unidos, liderado na altura por Barack Obama. Mas foi só em 2019 que Daniel Hale foi formalmente acusado pela divulgação de informações secretas. A condenação ocorreu no final do mês passado: 45 meses de prisão – quase quatro anos – por denunciar crimes de guerra do exército americano.

Crimes de guerra? Não será tal classificação algo exagerada? Para combater o terrorismo, talvez os meios justifiquem os fins, já que o adversário certamente não se vai comedir.

Uma discussão complexa, que merece um nível de escrutínio muito mais aprofundado do que me é possível oferecer neste momento. No entanto, há pelo menos uma observação que me parece pouco controversa: se quase 90% das mortes causadas por um instrumento de guerra – neste caso, os drones e respectivos mísseis – são danos colaterais, muitas vezes civis, e se continuam a ser utilizados sem qualquer tipo de alteração operacional, ao mesmo tempo que se esconde deliberadamente a identidade das vítimas… Há algo de muito errado a acontecer.

No Ocidente existe uma certa aura de desculpabilização quanto à actuação internacional dos Estados Unidos. São a “polícia mundial”, como gostam de anunciar. Por vezes erram, mas são enganos de boa fé. Só querem proteger o mundo (parte dele, pelo menos). Mas independentemente das intenções declaradas, no que diz respeito a invasões e mudanças de regime, a história não lhes é particularmente favorável. Relembremos uma das guerras mais devastadoras dos últimos tempos, a guerra no Iraque.

As estimativas mais conservadoras apontam para que perto de 100 mil civis tenham perdido a vida no Iraque; provavelmente foram muitos mais. Dos 19 terroristas que participaram nos atentados de 11 de Setembro de 2001, 15 eram sauditas e nenhum era iraquiano. A principal justificação para essa guerra revelou-se falsa, já que não havia armas de destruição maciça no Iraque – não passou de uma mentira descarada de Bush e Cheney, como veio a ser descoberto mais tarde. Tarde demais. É suposto confiar na sapiência destes estrategas e generais?

Guerra sem atrocidades não existe, mas tal truísmo não pode servir de desculpa. Se há governos a cometê-las, sejam de que país forem, a sociedade civil merece saber. Utilizando uma lei de 1917, o Espionage Act – lei altamente controversa pelo modo como afasta várias garantias penais dos arguidos – o governo americano tem, sob múltiplas administrações, vindo a perseguir e castigar uma série de denunciantes e até jornalistas (Assange continua na prisão e em risco de ser extraditado). Onde estão os valores liberais e democráticos?

Daniel Hale, como vários whistleblowers antes dele, actuou de forma contrária à lei, mas conforme à justiça. Por seguir a sua consciência vai passar quatro anos na prisão. Ser denunciante não compensa, e não é por acaso que sucessivas administrações americanas têm insistido em aplicar uma lei draconiana (e de constitucionalidade questionável) para os acusar: pode ser que a próxima pessoa que se sinta compelida a seguir a sua consciência tenha demasiado medo para seguir em frente. Para bem da democracia, resta a esperança que não percam a coragem.

“Não consegui continuar a viver num mundo no qual se fingia que estas coisas não estavam a acontecer. Perdoe-me, meritíssimo, por ter roubado papéis em vez de vidas humanas”, disse Daniel Hale, pouco antes de ser condenado