As cores do racismo

O que Gilroy, Hall, Freyre e Du Bois nos ensinam é que as cores do racismo são políticas, não naturais. Para voltar à questão de se saber se Pedro Pichardo ou Patrícia Mamona são portugueses, é importante não perder de vista como funciona o racismo.

Quatro medalhas, uma delas de ouro. A participação portuguesa nos Jogos Olímpicos deste ano foi um sucesso. Até para mim, que não segui estas Olimpíadas com grande atenção, estes são números extraordinários. Os nossos atletas olímpicos estão de parabéns. Mas logo que Pedro Pichardo ganhou o ouro, houve quem questionasse se os medalhados eram “realmente portugueses.”

A intervenção do Presidente da República foi certeira, quer no timing, quer no tom. Em poucas horas, Marcelo explicou que Portugal será tão grande quanto for capaz de integrar efetivamente quer quem cá nasceu, quer quem escolha Portugal para viver. Para que não restassem dúvidas, sublinhou: “Dos quatro medalhados, três são de origem direta ou indireta africana: um afro-cubano português, uma angolana portuguesa, outro são-tomense português.” As declarações de Pedro Pichardo, filho de um refugiado político cubano, só vieram reforçar as palavras do PR.

Haverá, porém, quem não esteja convencido. Muitos são aqueles que associam a cor da bandeira a um certo tom de pele. E que a certas “raças” correspondem certos traços de comportamento. Tais crenças não são novas. Durante séculos, foram a forma dominante de pensamento. Doutra forma, como seria possível o sistema de escravatura? Só acreditando que há diferenças naturais entre diferentes grupos humanos se pode tentar legitimar um sistema de exploração de um grupo por outro. Foi assim que nasceu o conceito de raça – e, com ele, o preconceito racial.

Mas sempre houve quem resistisse a pensar desta forma. Para alguém como W.E.B. Du Bois (1868-1963), por exemplo, fazer corresponder a cor de uma bandeira a uma certa cor da pele era um produto da história. No caso dos Estados Unidos, uma história que havia redundado na contradição que define a condição da comunidade afro-americana: a contradição entre, por um lado, ser-se americano (com todos os direitos, liberdades e garantias associados) e, por outro, ser-se negro (e ver tudo isso negado). Para Du Bois, as cores da bandeira norte-americana estavam a ser indevidamente associadas apenas a um tom de pele, excluindo de forma gradativa todos os demais. Em 1900, Du Bois tentou reverter esta situação. Por ocasião da Exposição Universal de Paris, Du Bois fez uso de gráficos, tabelas e mapas coloridos com cores primárias para demonstrar o progresso feito pela comunidade afro-americana desde o fim da Guerra Civil – não obstante todos os obstáculos jurídicos, sociais e económicos que subsistiram apesar da abolição da escravatura.

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Visualizações por W.E.B. Du Bois da ‘American Negro Exhibit’ na Exposição de Paris, 1900 DR

A exposição foi um sucesso relativo. Se Du Bois logrou mostrar que se podia fazer corresponder a cor da pele a qualquer condição (atraso/progresso, servidão/liberdade), a verdade é que passou despercebida na imprensa do seu país de origem.

Três anos mais tarde, Du Bois publicaria aquela que viria a ser a obra mais famosa: As Almas do Povo Negro, onde o ativismo infográfico daria lugar a um cuidadoso trabalho de composição textual, um trabalho cuja coerência é garantida pelo mesmo dualismo acima aludido – a contradição entre ser-se negro e americano. A ideia central do livro é a de que o problema do século XX é o problema do racismo. Du Bois chama-lhe a “linha da cor”, uma linha imaginária que separa as raças mais escuras das raças mais claras na América, como no resto do mundo. Qual a natureza desta linha imaginária? Du Bois não tem dúvidas. Apesar de imaginária (porque socialmente construída), nem por isso esta linha é menos real nos seus efeitos. Este é, a meu ver, o seu mais importante legado para a sociologia.

Há aqui um paralelo interessante com Gilberto Freyre que, primeiro em Casa Grande e Senzala (1933) e depois em Sobrados e Mucambos (1936), rejeita igualmente uma explicação biológica da raça e do preconceito racial em nome de uma explicação histórica e cultural. Mas teríamos de esperar pelos anos 60, e pelo Centro de Estudos Culturais Contemporâneos (CCCS) da Universidade de Birmingham, para um modelo cultural das relações raciais. Foi aqui que, entre 1964 e 2002, o projeto de “estudos culturais” foi desenvolvido por figuras como Richard Hoggart e, sobretudo, Stuart Hall. A linha da cor de que falava Du Bois é o ponto de partida de Stuart Hall. Raça passa a ser um sistema de relações absolutamente arbitrário. O valor moral associado a um certo tom de pele num contexto deriva absolutamente da sua relação com os demais. Isto significa que a mesmíssima cor de pele pode ser absolutamente valorizada num contexto e absolutamente desvalorizada noutro. Não por acaso, aquando da sua morte, Stuart Hall é apelidado de “Du Bois da Grã-Bretanha”.

Hoje em dia, a tocha dos estudos culturais é empunhada por Paul Gilroy. O seu livro mais famoso é O Atlântico Negro (1993), em que mostra o papel das culturas transnacionais dos escravos e dos seus descendentes na formação do mundo moderno. Mas este não foi o seu primeiro livro. O seu primeiro livro foi There Ain’t No Black in the Union Jack (1987), uma das leituras recomendadas por Lewis Hamilton. Perguntar porque está a cor negra ausente da bandeira inglesa é uma forma subtil de sugerir que é difícil separar nacionalismo de racismo em Inglaterra. Escrito décadas antes do “Brexit”, onde os fantasmas do nacionalismo, xenofobia e racismo vieram ao de cima, o mínimo que se pode dizer é que Gilroy teve razão antes de tempo. Gilroy deu há dias uma entrevista de fundo ao Guardian onde passa em revista muitos destes assuntos. Vale a pena ler.

O que Gilroy, Hall, Freyre e Du Bois nos ensinam é que as cores do racismo são políticas, não naturais. Para voltar à questão de se saber se Pedro Pichardo ou Patrícia Mamona são portugueses, é importante não perder de vista como funciona o racismo.

O racismo é, em parte, uma questão de atitudes individuais: preconceito racial, como o meu colega Jorge Vala explicou aqui no PÚBLICO. Mas, como diz Gilroy, ecoando Hall e Du Bois, o racismo é também aquilo que torna a política possível, algo que ajuda a produzir o sentido que damos ao mundo que nos rodeia. Combater o racismo, e as suas muitas cores, passa também por, como no caso dos Jogos Olímpicos de Tóquio, associar as cores da bandeira portuguesa a uma delegação com múltiplos tons de pele – e medalhas de todas as cores.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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