A vida não é uma comunhão solene
A minha infância teve poucos dias felizes, não tenho dúvidas. Não sabíamos sequer que podíamos ter mais momentos de prazer.
Tarcísio era uma criança. Disso lembro-me bem. Um miúdo que se ofereceu para morrer quando Roma se divertia a ver a arena ensanguentada com cristãos mortos. A crueldade esteve sempre connosco. Aquilo de que somos capazes não se pode definir. A crueldade ou é contrariada ou facilmente nos ganha.
Tarcísio era o protagonista do discurso que me escreveram para ler no púlpito da igreja quando fiz a Comunhão Solene. Era um símbolo de estoicismo e coragem. Talvez nenhum miúdo em dia de festa tenha prestado atenção ao discurso, mas falava da sua valentia e das catacumbas para onde foi recolhido já morto.
Eu tinha 9 anos quando fui incumbida de ler as memórias de Tarcísio, mas fiquei doente. Uma hepatite varria o ciclo preparatório e eu fui apanhada na correnteza.
Lembro-me de ter saído à noite para festejar o São João com os meus pais. Talvez a última noite em que saímos os três e me pareceu ser um tempo feliz com o meu pai sempre exuberante a meter-se com as miúdas e a minha mãe contida (como sempre foi) a desculpá-lo. A nossa noite a três. De manhã acordei e já não consegui ir à casa de banho. E quando fui, muito mais tarde, parecia sangue o que ali estava. Era o fígado em contrição.
A hepatite apanhou-me fraca e manteve-me ali cativa na minha pequena cama branca de ferro, um mês. Quando por fim me levantei o meu peso não tinha existência quase. Nesse mês vi-me privada de muitos sabores e descobri o prazer de comer coisas que antes não tinham importância nenhuma: eu esperava com expectativa o momento de poder comer um pedaço de pão com marmelada ou goiabada. Ganhava o dia com isso. E com a salada fresca temperada com limão.
Na cama branca de ferro sonhei com muitas coisas. Às vezes sonhava que havia de poder comer uma caixa inteira de Mil-folhas que em Lisboa se chamam Napoleões. Sonhava comê-los por etapas: primeiro a parte de cima polvilhada de açúcar em pó, depois as camadas que se seguiam ligadas por um creme amarelo pálido como eu. Por fim a última folha que selava as mil que eu tanto queria.
Na cama branca de ferro com uma saúde nada férrea sonhei com tudo e com Tarcísio: tinha-me comprometido a decorar o discurso que falava sobre a coragem dele, mas faltavam-me as forças todas. E a memória empurrava-me o texto para depois. Longo esse discurso sobre o miúdo que a fúria romana trucidara sem compaixão.
Quando por fim me levantei, já recomposta, voltei para os últimos dias de escola e fui também tocar à campainha do padre para lhe dizer (agora penso que a voz já era esta, séria para a idade) que aquele discurso era demasiado longo para uma criança como eu. E ele concordou em reduzi-lo.
Quando 40 anos depois olho para uma fotografia que guarda esse dia, vejo-me com um penteado de Princesa Leia e mãos abertas num púlpito que expunha a minha magreza e a tentativa de descrever o feito estóico do pequeno Tarcísio.
Lembro-me de como o dia foi infeliz: os sapatos que eu tinha escolhido (brancos com umas linhas finas pretas) ensanguentavam-me os pés e o calor daquele dia fazia tudo parecer um pesadelo maior do que o mês inteiro de cama.
O meu pai tinha-me preparado uma festa com os bolos e os refrigerantes que eu nunca tinha somado na infância toda, e no terraço havia bancos de correr que acolhiam os convidados.
Houve um alvoroço porque o meu avô João Maria perdeu-se até chegar ali, já com a memória a fintá-lo.
Tantas coisas pode contar uma fotografia. Uma fotografia a sério de papel levemente tocada pelo tempo, e onde se condensa não um dia, mas décadas, uma forma de vida.
A minha infância teve poucos dias felizes, não tenho dúvidas. Não sabíamos sequer que podíamos ter mais momentos de prazer. Não sabíamos sequer que se podia construir o prazer sem condenações, sem castigos. Não sabíamos que a vida afinal não era só feita de sacrifícios para chegar a algum lado. Também foi. Também chegámos a algum lado, mas não teimem em ver no prazer uma fuga aos vossos deveres e obrigações. A vida tem demasiado valor para não ser admirada, celebrada, partilhada com os outros.
A vida não é uma comunhão solene. É uma comunhão alegre até nos momentos tristes.
Não a viverei de outra forma.