Ler Nós, cem anos depois

Considerado um dos primeiros livros de distopia do século XX, Nós, de Yvegeny Zamyatin, foi precursor de outros clássicos e inclusive serviu de influência ao 1984 de Orwell, apresentando várias semelhanças com outras obras distópicas.

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Em 1920, no rescaldo da primeira grande guerra, Yvegeny ​Zamyatin pegara na pena e dera origem a uma das principais obras distópicas do século XX, Nós. Dois anos antes da marcha de Roma de Mussolini e mais de dez anos antes da subida de Hitler ao poder, desenhava-se um futuro distópico onde a liberdade e a singularidade não existiam, onde a opressão e manipulação resistiam. Esta obra, que à semelhança de 1984 de George Orwell é uma chamada de alerta crucial, apresenta um quotidiano oprimido de ilusória perfeição e bem-estar onde o narrador escreve sobre o seu estilo de vida, salientando várias características inerentes a um regime autoritário, sem se aperceber disso.

Embrulhei-me na leitura deste livro sensivelmente pouco tempo depois do término de outro clássico distópico, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que alerta para a importância dos livros, concretizando, assim, a minha sétima leitura deste género que tanto me fascina e me interessa, essencialmente pela chamada de alerta presente. Em boa verdade, nunca é demais percorrer as estantes dos livros distópicos, pois estes são preponderantes estimulantes à reflexão e ao espírito crítico, alertando para a necessidade do cepticismo, da dúvida e do pensamento autónomo de modo a combater a manipulação e a persuasão e instigando a um olhar crítico sobre as problemáticas da actualidade.

Assim se sobressai também a obra de Zamyatin, o escritor russo que só anos mais tarde viria esta obra publicada na Rússia. Como uma obra alarmante, Nós é um dos livros constantemente pousados nas prateleiras das livrarias e mesmo cem anos depois não se perdera no correr do tempo, pelo contrário, continua a estar em destaque no mundo contemporâneo, sendo crucial para proporcionar momentos de reflexão às mentes do tempo presente. Este tornou-se à medida do avançar da contemporaneidade uma obra de reflexão crucial sobre a repressão e a opressão da liberdade, dos princípios democráticos e dos direitos humanos, pois como preditor dos regimes autoritários, Zamyatin apresenta ao leitor as fragilidades do ser humano manipulado e passivo desprovido de espírito crítico e do pensamento autónomo inserido num ambiente autoritário.

Considerado um dos primeiros livros de distopia do século XX, foi precursor de outros clássicos e inclusive serviu de influência ao 1984 de Orwell, apresentando várias semelhanças com outras obras distópicas. Uma das características particulares é a ausência da singularidade, à semelhança da realidade em A História de uma Serva, no mundo distópico de Nós predomina a ausência de identidade com a inexistência de nomes, sendo os indivíduos identificados por números. Interessa atender como a substituição da identificação por números retira individualidade e humanidade tornado o indivíduo em apenas um elemento da sociedade. Por outro lado, denota-se a existência de um rigoroso controlo presente, por exemplo, na rígida regularização do quotidiano dos cidadãos com a imposição de um horário obrigatório. Neste caso, é interessante notar como o narrador normaliza a obrigatoriedade de cumprir o horário imposto sem questionar ou duvidar. Desta forma, constatam-se vários comportamentos preocupantes para que Zamyatin alerta, entre eles, a aceitação, a passividade, a ausência de questionamento, de pensamento crítico e de reflexão. Este é o comportamento de consolidação dos regimes autoritários e que, na grande maioria das vezes, os indivíduos adoptam, ignorando-o e sendo vítimas da manipulação e opressão. Para contrariar estes comportamentos, a literatura distópica revela-se crucial ao proporcionar a reflexão e fomentando o espírito crítico através da ficção.

Desta forma, cem anos depois, o cenário distópico traçado em Nós continua a ser uma possível realidade futura ao adoptar-se uma postura letárgica e apática. Assim, esta obra permite reflectir sobre variadas questões, entre elas, como a nossa liberdade pode ser privada em algo tão simples como a inexistência de nomes próprios?

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