Artistas para a rua, rua para os artistas

Depois de quase dois anos a queixarmo-nos por ter de ficar em casa, devíamos, também todos e todas, sair para a rua para produzir ou consumir street art e busking.

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Paulo Pimenta

É professor de música e tornou-se artista de rua no Centro Histórico do Porto, quando o confinamento, que a pandemia provocou, fechou as escolas. Por isto, ouvi música clássica enquanto caminhava e acabámos a conversar sobre regulamentação da arte de rua. Disse-me que não existe, como existe noutros paísese que a polícia pode apreender o material e fazer um auto de ocupação ilegal do espaço público. Acontece quando moradores e comerciantes se queixam do som alto dos amplificadores, das entradas bloqueadas por performances e dos conflitos acessos entre artistas de rua – por um lugar melhor na rua. 

Durante esta conversa, as ruas retomavam o movimento e a cultura – e não tinham que ser só trotinetas, tuk-tuks, autocarros descapotáveis e guias de sardinhas penduradas; e uma notícia do PÚBLICO sobre os e as artistas de rua informava que, em 2019/2020, se iniciou e se terminou a primeira tentativa para a sua organização (Associação no Porto, Sindicato em Lisboa); estes e estas não se conheciam (quem são? quantos são? o que fazem? o que precisam?); e a regulamentação existente passava pela vontade da política local (sabe-se lá com que intenções) pelo licenciamento administrativo de ocupação do espaço público (como se a arte fosse ocupação) e por “um código de conduta informal” entre os e as artistas de rua (como se, numa democracia e num Estado de direito, a conduta informal pudesse ser regulamento ou “código”). 

Quanto a mim, parado é quando viajo mais. Ouvir música clássica numa rua do Porto, fez-me perguntar se, enquanto ficámos em casa, não perdemos uma oportunidade (mais tempo livre) para organizar a arte de rua no quadro de uma democracia e um Estado de direito, isto é: escrever manifestos, regulamentos e estatutos; fazer inquéritos e levantamentos; estudar e contactar outras associações mundiais; telefonemas, reuniões online emails. Enfim, todo esse trabalho burocrático que é fácil criticar, mas que permite organizar a vida colectiva numa democracia e num Estado de direito. Perdida esta oportunidade, não terá sido ela oferecida a quem a usará quando a arte de rua se tornar um problema (em vez da solução), quando for preciso regulamentá-la, em vez de a organizar, colectiva e solidariamente? 

Fez-me, ainda, perguntar por que razões a street art e o busking têm de ter estatutos políticos diferentes? Por que razões uma é marginal e a outra é “turística”? Uma é movimento social e cultural e a outra é uma ocupação e animação do espaço público? Reconhecendo as suas diferenças (isto é, as suas singularidades), ambas humanizam a cidade e os cidadãos e as cidadãs, dando-lhes a diversão e a diversidade que emancipa os sentidos e os sentimentos, atinge as emoções e provoca as razões. Street art busking, como expressões de arte urbana, tornam as cidades lugares de vida, onde é mais fácil caminhar, ler num jardim público, conversar numa praça, consumir pintura, música, literatura, malabarismo... Enfim, onde é mais fácil ultrapassar as dicotomias entre a razão, a emoção e a espiritualidade. 

Depois de quase dois anos a queixarmo-nos por ter de ficar em casa, devíamos, também todos e todas, sair para a rua para produzir ou consumir street art busking; devíamos reclamar o estatuto político para estas expressões de arte e de cultura urbana; devíamos exigir que se organizem colectivamente, salvaguardando as suas singularidades e distinções; e devíamos mandar os e as artistas para a rua e construir ruas para os e as artistas. 

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