O Martim Moniz, o seu “processo participativo” e o futuro dos processos participativos em Lisboa

Lisboa começou o séc. XXI com práticas urbanísticas do passado e com uma concepção pouco qualificada do que é a participação. A burocracia municipal continua a impor-se em tudo o que é mais determinante para a vida das pessoas, fazendo vingar as práticas do passado e a individualização das soluções.

Passei os últimos quinze anos da minha vida a cruzar diariamente a Praça do Martim Moniz, em Lisboa, e a constatar, apesar dos seus imensos problemas de desenho, que a sua urbanidade sobrevive a tudo a partir da sua ocupação popular e até à abertura de quiosques com preços de gentrificação. Obviamente, estive contra a solução de privatização da sua zona central. Escrevi alguma coisa sobre o assunto, participei através de associações locais e envolvi-me nas manifestações que construíram o movimento para travar o processo que a CML tinha em marcha.

Não tenho uma ideia fechada do que se fazer daquela praça mas, sobre a possibilidade de se vir a construir um jardim no Martim Moniz, sempre levantei duas questões:

a) a solução urbanística não devia deixar qualquer hipótese futura de encerramento do jardim, ao contrário do que tem sido a atitude corrente da CML e freguesias, resolvendo problemas de segurança com grades e enjaulamentos, que mais não são que soluções mandrionas e violadoras do direito à cidade.

b) a existência de um jardim devia-nos fazer reflectir sobre o seu potencial de bacia de retenção de águas provenientes do eixo da Av. Almirante Reis e, consequentemente, devia motivar uma reflexão sobre a permanência do parque de estacionamento enterrado que impermeabiliza uma parte significativa da praça onde não passa o túnel do metro.

Como qualquer outro cidadão, participei online no Processo Participativo desencadeado pelo município, enviando o meu contributo. No entanto, o meu contributo não consta do Relatório da Participação, o que, como compreenderão, me levanta dúvidas sobre a fiabilidade do processo. Quem é que se entende no direito de eliminar propostas dos cidadãos e, pior, quem é que nos garante que as melhores propostas foram tornadas públicas?

Admito que haja quem entenda que as minhas propostas são uma patetice, o problema é que no desenho do processo não existe qualquer organismo/entidade que assuma a responsabilidade pela análise e eliminação das propostas. Assim sendo, permito-me concluir que há uma mão invisível que esconde e elimina propostas e valoriza outras. O que me parece grave.

Mas este processo motiva-me mais perplexidades.

Quando ouvi o município apresentar os resultados desta fase surpreendi-me por se declarar como um facto demonstrativo da elevada qualidade do processo 89% dos seus participantes afirmarem ter licenciatura ou um grau académico superior. Conhecendo a praça e quem a habita, diria que isso significa que a esmagadora maioria dos seus residentes diários não participou. Em meu entender, e ao contrário do que se afirma, a caracterização dos participantes não qualifica este processo. Antes, coloca-o em causa. Acresce que quando se identifica as nacionalidades dos participantes ainda há uma exclusão mais evidente ao verificar-se terem participado 24 italianos, 12 alemães e dez franceses e, por outro lado, apenas uma pessoa do Bangladesh, uma do Nepal ou uma do Paquistão.

Avançando para o relatório e o programa que o município diz ser o resultado do processo participativo, o Martim Moniz, ao contrário do esperado, parece ser um extraordinário território de consensos, onde toda a gente quer ver um jardim. Independentemente da minha opinião estar muito mais próxima da solução de um jardim do que das anteriores soluções preconizadas pelo município, preocupa-me que não haja diversidade de opiniões a manifestarem-se no processo participativo. Como, apesar da violenta gentrificação dos últimos anos, não acho que estejamos perante uma cidade morta e vazia de ideias, tendo a pensar que os seus resultados estão a ser condicionados para que todos pensemos existir uma unanimidade em torno da solução jardim, que o município já assumiu como sua.

No entanto, o que melhor caracteriza o que parecem ser os objectivos da CML para estes processos é a sua decisão de candidatar o Processo Participativo do Martim Moniz ao prémio internacional de Boas Práticas de Participação Cidadã promovido pelo Observatório Internacional para a Democracia Participativa. Note-se que esta candidatura é feita a meio do processo (no final da fase 3 das cinco fases propostas pela CML) e usa uma das suas base de dados, sem autorização dos próprios, para propagandear e pedir o voto online. Trata-se de uma tentativa de propagandear o processo ainda antes de ele estar concluído. Marketing, puro e duro.

Se aqui cheguei a partir do exemplo do Processo Participativo do Martim Moniz, podê-lo-ia ter feito, com semelhante diagnóstico e resultado, a partir das propostas ao OP Lisboa politicamente rejeitadas/adiadas ou a partir do que se diz ser a conclusão da “discussão pública” da Operação de Rendas Acessíveis para o Alto do Restelo. Esta “participação” parece cada vez mais confinada a uma operação de marketing e publicidade em que, no final, tudo aponta para o resultado que o mandante quiser.

Sendo que estamos num momento eleitoral em que todas as candidaturas do campo democrático apresentam programas políticos de reforço dos processos de participação e envolvimento das populações nos processos de decisão, junto-me à reflexão sobre o que é importante fazer em Lisboa.

Em primeiro lugar, importa que os futuros eleitos ganhem consciência que o mandato que lhes é conferido pelo voto popular não os obriga a ter opinião sobre tudo e não lhes confere legitimidade para decidir sobre todas as problemáticas urbanas. Ou seja, o mandato não é uma carta em branco para tudo decidirem nos próximos quatro anos ou para implementarem a ideia de cidade deste ou daquele vereador. Há muitas decisões sobre as formas de construção de cidade que têm de ser discutidas na praça pública e, no final, não deve ser a CML/vereador que decide, mas o povo. Este, diria, é um bom princípio democrático que devia estar mais presente nos discursos políticos municipais.

Por outro lado, os “serviços” deviam estar mais vocacionados para servir as pessoas do que para servir os vereadores. Muitas das iniciativas de cariz popular estão, continuamente, a esbarrar numa entidade abstrata a que se chama “serviços”. Às vezes sob a forma de “parecer técnico”, outras a partir de uma formulação ainda mais genérica em torno do que é a “opinião dos serviços” – que tantas vezes é onde o vereador menos corajoso esconde a sua opinião. Pior, aqueles que, dos “serviços”, vejo no terreno e a apoiar as populações são, tantas vezes, esquecidos na progressão de carreira e na assunção de maiores responsabilidades. Uma das alterações essenciais, inevitável para a valorização de toda a administração pública, é colocar os “serviços” ao lado das pessoas e não a julgá-las ou, pior, a obstaculizar as suas iniciativas e a abusar do seu poder a partir do gabinete. Por mais utópica ou irrealista que seja uma ideia que um bairro tem para concretizar, temos de preferir ter os técnicos municipais a discutir no terreno essa ideia do que sentados, no conforto do seu gabinete, a escrever um parecer desfavorável.

Mas o que deve ser, de facto, estrutural é a construção de espaços para a discussão colectiva e o reforço das organizações de representação colectiva. Note-se que, no Processo Participativo do Martim Moniz, até a participação das crianças foi individualizada, não lhes permitindo muito mais do que a realização de um desenho individual que mais não fez que reproduzir estereótipos de jardins ou parques infantis, em vez de se tratar de evidenciar ideias conflituantes para que daí se construam soluções colectivas ou para que aí se identifiquem os pontos de divergência, inconciliáveis, sobre os quais importa decidir. A individualização da participação e o seu controlo por uma única organização – no caso do Martim Moniz, a própria CML – leva a que os resultados sejam altamente condicionados, opacos e centralizados. Num processo de discussão colectiva, as posições podem evoluir e, até, alterar-se. Para ter verdadeiros processos participativos é fundamental existirem, nos territórios, organizações e entidades populares com práticas democráticas instituídas e não se deve ter receio de lhes delegar responsabilidades, desde que o critério não seja de proximidade ou subserviência aos vereadores ou às respectivas juntas de freguesia, mas a partir de uma avaliação dos seus procedimentos democráticos e capacidade de envolvimento/mobilização.

Lisboa começou o séc. XXI com práticas urbanísticas do passado e com uma concepção pouco qualificada do que é a participação. Se o BIP/ZIP eclodiu e projectou-se como um programa público internacionalmente reconhecido e premiado ao nível do que é o desenvolvimento local e, acrescento eu, contribuiu para a organização, estruturação e sustentabilidade de antigas e novas entidades locais e colectividades, a burocracia municipal continua a impor-se em tudo o que é mais determinante para a vida das pessoas, fazendo vingar as práticas do passado e a individualização das soluções. Ao fundo imobiliário e ao grande promotor imobiliário, ainda lhe são dados privilégios e facilidades que uma associação de moradores ou uma cooperativa não têm. O BIP/ZIP é um programa público e um instrumento político de baixíssimo custo (dez anos de Programa BIP/ZIP custou muito menos que a obra de ampliação do Palácio da Ajuda) e elevado impacto, que nos próximos quatro anos poderá ser uma alavanca de construção de uma cidade mais democrática e mais participada se se assumir como estrutural nas políticas de construção de cidade. Mas, para que tal aconteça, os representantes do povo que constituírem o futuro executivo municipal terão de estar disponíveis para desenhar instrumentos de co-governação – o que significa partilha de poder – e de participação popular muito além do que os que foram desenhados nos últimos anos em Lisboa e que nos retirem deste caminho de participação-chique feita para vender um produto imobiliário.

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