O Código dos Contratos Públicos, primeira vítima dos disparos da bazooka

A recente lei sobre contratação pública se é um evidente exercício falhado quanto às medidas especiais, não deixa de conter um contra-sistema que perturba a transparência das adjudicações, desprezando o modelo nacional de fiscalização financeira.

1. Com a publicação da lei n.º 30/2021, de 21 de maio, foi trazida uma nova (mais uma...) vaga de regras sobre contratação pública para o nosso ordenamento jurídico. Depois de uma versão inicial da reforma apresentada pelo Governo, que foi desfeita pelo parecer do Tribunal de Contas, entregue no Parlamento a 28 de setembro, chegou-se a um primeiro acordo partidário, que garantia a sua aprovação. Diploma assim votado favoravelmente na Assembleia da República, mas que faleceu pouco tempo depois, às mãos do Presidente da República. Tudo em 2020. Já em 2021, com base num novo acordo partidário, outro diploma foi aprovado, corporizando a reforma ao Código dos Contratos Públicos, de 2008. Que já tinha sido muito alterado, em 2012 e 2017.

2. O anúncio público do propósito desta reforma era a necessidade de dotar Portugal de instrumentos jurídicos de contratação pública que permitissem gastar as vultuosas verbas provenientes da União Europeia (quadro normal de apoio para + fatia da New Generation EU). Será que a lei nº 30/2021,de 21 de maio atingiu esses objetivos? Claro que não, pois o procedimento-vedeta, a consulta prévia simplificada, só tem aplicação para financiar empreitadas cujo preço se contenha abaixo dos € 750.000, e para financiar os contratos públicos de fornecimento de bens ou de prestação de serviços com valor estimado até € 139.000 ou € 214.000, conforme as entidades adjudicantes em questão.

3. Portanto, como tantas vezes tem acontecido, declara-se uma coisa, mas faz-se outra. Nenhuma novidade a este respeito. Mas então para quê aprovar um novo diploma, que contém, primeiro, um regime para as medidas especiais sobre contratação pública (22 artigos) e, depois, mais de 80 alterações permanentes ao Código dos Contratos Públicos?

4. Daquilo que são as novas normas, o que essencialmente se fez foi operar uma volumosa transposição da diretiva 2014/24/UE, sobretudo no que diz respeito ao seu artigo 72, sobre as modificações do objeto dos contratos públicos. Ampliou-se a possibilidade de o próprio contrato inserir regras para a auto-alteração (artigo 312), copiou-se a letra da diretiva para prever modificações ao contrato nela previstas (artigo 313) e tentou-se a destruição definitiva do sistema de trabalhos complementares, pela eliminação da necessidade de existir uma circunstância imprevista (artigo 370). Aqui está o núcleo da lei n.º 30/2021, de 21 de maio.

5. Ou seja, a recente lei sobre contratação pública se é um evidente exercício falhado quanto às medidas especiais, não deixa de conter um contra-sistema que perturba a transparência das adjudicações, flexibilizando ao máximo as modificações objetivas e desprezando o modelo nacional de fiscalização financeira. Um exemplo muito interessante é a possibilidade de adjudicar a uma proposta superior ao valor do preço-base (artigo 70). Além de atropelar a noção dominante (desde 2008) de preço-base, inflaciona o compromisso de despesa, num exercício que também se terá de fazer para os contratos que admitam a sua auto-alteração, imobilizando recursos públicos que podem nem sequer vir a ser necessários. E se a intenção é agir perante o aviltamento de preços, ou a sua volatilidade, nomeadamente na construção civil, tudo é de uma ingenuidade que confrange, porque fenómeno é muito mais grave do que os 20% de variação que a lei agora vai permitir.

6. A ideia de trabalhar modelos menos exigentes em matéria da transparência, por suposto benefício da eficiência, não é original. Nem forçosamente boa. Que o diga o ministro da Justiça do XIV Governo Constitucional, homónimo do atual primeiro-ministro, quando teve de lidar com um problema algo caricato. No Governo imediatamente precedente, também com António Guterres como primeiro-ministro, fora aprovado o decreto-lei nº 46/96, de 14 de maio, que agilizava a contratação que visasse a reconversão de instalações militares a estabelecimentos prisionais. Tudo podia ser feito por ajuste direto, para ser mais rápido. Quando o Tribunal de Contas auditou a execução do dispositivo do diploma citado, chegou à conclusão que o tempo real de execução chegava a ser 3 ou 4 vezes superior ao que resultaria da realização de um banal concurso público.

7. Intrigante, também, a posição do Presidente da República, em todo este processo. Na mensagem que, a 5 de dezembro de 2020,  enviou à Assembleia da República, devolvendo a primeira versão aprovada no Parlamento referiu Sua Excelência que se deveria ponderar : “os efeitos quanto ao adjudicante e ao adjudicatário do controlo a posteriori de ilegalidades e de irregularidades detetadas pelo Tribunal de Contas”. Na lei nº 30/2021, de 21 de maio (regularmente promulgada), nada consta sobre esse tema, sobretudo quanto a consequências para o adjudicatário. O que aí surge é um procedimento confuso e irrelevante, que nada de importante acrescenta ao exercício dos poderes de fiscalização financeira pelo Tribunal de Contas, se é que não venha mesmo a perturbá-lo (artigo 17, n.º 2, da lei).

8. Aliás, com o jogo de limiares definido para os contratos adjudicados com a aplicação das medidas especiais sobre contratação pública, não estavam (com, ou sem, a lei nº 30/2021, de 21 de maio) sujeitos a fiscalização prévia face às regras gerais respetivas, sempre que estivesse em causa a aplicação da consulta prévia simplificada (as especialidades no concurso público, no concurso limitado por prévia qualificação ou o ajuste direto são tão insignificantes, que nem merecem referência específica).

9. Ou seja, dito de outro modo, não há contratos cuja adjudicação esteja baseada nas medidas especiais e que possam atingir os € 750.000, sempre que esteja em causa a consulta prévia simplificada, definidos seja na lei n.º 30/2021, de 21 de maio, ou no artigo 48, da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, tal como alterado pelo artigo 7.º, da Lei 27-A/2020, de 24 de julho (alteração à Lei do Orçamento para 2020). Se se atingirem os € 750.000 (o que só é possível para as empreitadas, dada aplicação obrigatória do artigo 474), deixam de estar abrangidos pelas medidas especiais, e passam a estar sujeitos a fiscalização prévia. Contudo, isso não impede o cumprimento da Resolução n.º 5/2021-PG, aprovada pelo Plenário do Tribunal de Contas, a 25 de junho de 2021.

10. Uma nota final para a primeira retificação (primeira porque nada garante que não se volte, por recurso a esta figura, a alterar a lei n.º 30/2021, de 21 de maio, outras vezes, sem respeitar a Constituição) à recente lei (retificação n.º 26/2021, publicada a 21 de julho, afetando os artigos 283-A e 318-A, do CCP). Salvo prova em contrário, temos aqui mais um caso de grosseira inexistência jurídica, num comportamento que, escandalosamente, há muito se mantém impune.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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